Edyr Augusto é hoje um dos nomes mais proeminentes da literatura contemporânea brasileira. Seus livros, editados a partir da década de 1990, pouco a pouco foram ganhando destaque da crítica e, já se pode dizer, do público leitor. Algumas de suas obras foram traduzidas para o inglês e francês. Desde então, o escritor paraense tornou-se um dos principais artistas que representam a complexa contemporaneidade da urbanidade amazônica, especialmente da capital paraense.
Longe de ser um porta voz de uma única e imutável identidade regional, sua literatura está muito mais ligada às últimas três décadas da realidade urbana da região. Essa realidade está situada principalmente em seus centros urbanos, mais especificamente, em Belém do Pará.
É com “Os Éguas”, de 1998, primeiro romance do autor, que essa trajetória e essa narrativa da cidade começam a se desenvolver. Nesse romance, já está presente uma caracterização da região que dista radicalmente das imagens consagradas pelos discursos regionalistas e midiáticos. A Belém que surge é povoada pela degeneração de seu ambiente.
A cidade se faz presente pela violência, pela corrupção, pelas drogas, pela simulação, pelo medo. Através do Personagem Gil, um investigador de polícia, a capital do Pará e seus “tipos” salta para fora, agônica e doente, como um instinto represado pela dor, que implode, página por página, a realidade.
Essa caracterização se seguirá nos livros posteriores, como “Moscow” (2001), “Casa de caba” (2004), “Um sol para cada um” (2008), “Selva concreta (2013) e “Pssica” (2015). As imagens da caótica vida urbana que alimenta o noticiário “mundo cão” das capitais, como Belém, é um dos temas dos livros de Edyr, mas neles não está apenas uma imagem aterradora em fragmentos demonstrada, mas sim um projeto de escrita que formaliza a contemporaneidade decrépita que a todo dia cintila e obscurece nossos olhos.
Vejam, por exemplo, a abertura do conto “Sujou”, do livro “Um sol para cada um”, que integrou, em 2010, a “Antologia Pan-Americana: 48 contos contemporâneos do nosso continente”:
“Eu já sacava o cara. A gente fica ali na esquina e vai vendo as figuras da vizinhança. Basta qualquer barulho e eles chegam na janela dos prédios. Fica tudo lá, olhando. Mas parece que tem uma fronteira, sabe? Daqui para lá e de lá pra cá. Lá pra frente os barões. Aqui pra trás a zona. Mas é que às vezes tá roça mesmo. Ele chegou com o carrão e ficou esperando abrir o portão da garagem. Encostei, disse oi, pedi uma ponta, cigarro qualquer coisa. Disse que dava chupada, essas porras. Me deu uma banda. A Maricélia disse que podia dar merda, o cara se queixar, sei lá, segurança do edifício. Não deu. Disse que outro dia, tava de nóia, rolou discussão e mandaram chamar a polícia por causa do barulho”.
Imagem: Reprodução
Na cidade de Edyr, a Belém é, ao mesmo tempo, dividida e indivisível, vigilante e vigiada, repleta de gente e solitária. A prostituição é, aqui, uma de suas marcas. Presente no centro da cidade, ao lado de suas praças, de suas ruas centenárias, de seus orgulhosos prédios históricos.
O que está em jogo é essa possibilidade de observamos essas outras faces dessa contemporaneidade da cidade, não apenas para atestar esses aspectos desoladores. Mas, fundamentalmente, compreender que não os reconhecer, ignorá-los, é também ignorar essa história, essa configuração social, essa realidade. É desconsiderar uma das mais importantes formalizações estéticas que se encarrega de representá-la.
Não é apenas negar, como reação, uma Belém idealizada veiculada ainda hoje por vários discursos (midiáticos, sociais, institucionais). Mas é – sob pena de virarmos as costas para o contemporâneo e sua decisiva importância que, gostemos ou não, transformaram parte do “ethos” do ser amazônico, belenense – dar visibilidade a uma representação que dialoga decisivamente com essa experiência.
Mais do que uma outra face da Amazônia, de suas cidades, essa caracterização surge como uma possibilidade de reconhecermos que, se a arte não é, obrigatoriamente, uma reprodução da realidade, ela não é apenas uma manifestação extemporânea.
No caso da literatura de Edyr Augusto isso é ainda mais revelador. Exatamente porque ela pode nos proporcionar uma representação da cidade que está, ao mesmo tempo, próxima demais do leitor e distante demais (o jornalismo a aproxima pelo fragmento, pelo “fait divers”) de uma representação estética que a formalize, que a reúna em um corpo discursivo que tem nessa experiência urbana seu fundamento.
Esse fundamento é esteticamente construído em estreita relação com o gênero de literatura policial. Mas ao contrário do clássico romance policial que primava por um detetive sóbrio, talentoso, genial e pela decifração lógica do crime, precisa, implacável e por uma representação da cidade onde o criminoso é ainda um elemento que se esconde na multidão, a literatura de Augusto está muito mais próxima do gênero “pulp”. Desse gênero no qual o crime é parte essencial da grande cidade, que nela habita como um hematoma indissolúvel, como nas cidades norte-americanas povoadas pelo crime das primeiras décadas do século XX.
Imagem: Reprodução
Nesse ambiente, o detetive é alcoólatra, a violência é um de seus recursos, ele não é excepcional e a cidade que passa diante dele lhe parece como um acúmulo de seres e paisagens decaídos. Assim surge a cidade na literatura do Augusto paraense.
Sua narrativa, preenchida por essas características, adota uma série de imagens do lugar, imagens que remetem a espaços físicos, às caracterizações profundamente cênicas de situações e focalizações de seus “tipos” urbanos que, propositalmente, contrastam com um romântico discurso acostumado e atrofiado sobre a região e a “Cidade das mangueiras”.
A capital do Pará surge em sua literatura em um ritmo vertiginoso, sua escrita mimetiza o diálogo coloquial, o caos citadino, a fragmentação noticiosa dos jornais, o choque, a indiferença.
Uma representação que tem por temática o urbano e sua contemporaneidade, uma escrita que é realizada como um roteiro cinematográfico, repleta de imagens que nos levam diretamente para fisionomias imagéticas/fílmicas de Belém do Pará.
Nessa cidade “pulp”, nem sempre se pode lamentar o reluzente passado. Pode parecer desolador, mas, talvez, não se tenha mais tempo para essa lamentação, diante das cenas que implodem, diariamente, página por página, a realidade.
Veja também:
(Texto de Relivaldo Pinho, autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia”. ed.ufpa, 2015, especialmente para o DOL)
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