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O dia em que vi Emily de asas nas costas dentro de um ônibus

Eles estão lá aos milhares todos os dias na luta pelo pão de cada dia dentro dos ônibus de Belém e outras capitais. Na crônica de hoje (17), Anderson Araújo conta sobre o dia cruzou com Emily, personagem anônima da cidade.

Imagem ilustrativa da notícia O dia em que vi Emily de asas nas costas dentro de um ônibus

Quase ninguém notou a entrada de Emily e, talvez, viva alma tenha gravado o nome dela, exceto eu. Estava de máscara e tinha os cabelos vermelhos e compleição de corredora com os ossos do ombro pontudos prestes a rasgar a pele marrom. Já passava das sete da noite e ela aparentava cansaço. À primeira vista, não reparei muito bem, confesso. Para os meus padrões de observador compulsivo, não olhei quase nada. Estava de vestido escuro, curto, sandálias e tinha asas bordadas à tinta nas costas. Era só mais uma entre tantos.

A concorrência dentro dos coletivos é cruel e não falo sobre conseguir um assento para seguir viagem bem acomodado e seguro dos trancos e do humor dos motoristas, quase sempre entre o azedo e o amargo e o desejo de matar ou de morrer, kamikazes na quentura belenense. Na verdade, me refiro ao intenso comércio no interior dos ônibus da capital, sinal da péssima saúde econômica do Brasil de 2022, quando o emprego formal é luxo para pouquíssimos e as contas estão aí pela hora da morte. Para esse vírus sem cura, o remédio encontrado pela multidão de anônimos à margem é arrumar qualquer mercadoria e rumar para onde for possível vendê-las, porque os boletos não esperam e a fome, menos ainda.

Nessa luta renhida para ganhar o pão, não basta oferecer o produto. É preciso inovar nas técnicas de persuasão do cliente/passageiro. Vale quase tudo pelo trocado. A primeira missão é entrar no veículo: levantar o polegar e aguardar o olhar de aprovação do condutor para liberar a porta traseira como cortesia. Em seguida, entrar e vencer o medo de falar, vencer o parco vocabulário, vencer o tédio alheio, vencer a vergonha própria, vencer o desequilíbrio causado pelo movimento e pela irregularidade das esburacadas ruas da cidade e, acima de tudo, vencer a invisibilidade imposta pelo outro.

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Ambulantes nos ônibus não são como vendedores de loja, nem como os desejáveis feirantes em dia de feira, sempre a postos no exato lugar em que está a clientela disposta a comprar, seja na bonança, seja na penúria. Nos coletivos, os vendedores são um corpo estranho que desperta muitos incômodos e um punhado de sentimentos, em sua maioria, negativos, cuja variação vai desde a tola comiseração à egoísta raiva por ser um agente aleatório da perturbação de um ambiente já pouco tranquilo. São eles pedra no sapato, cisco no olho, espinha na garganta, cálculo no rim, penetras em festa triste com gente exausta. Resta-lhe vencer, portanto.

De tão pobres, sobra aos vendedores dentro dos veículos parco recurso para a ciência do convencimento. Não há muita alternativa senão o marketing de guerrilha para compensar a falta de artifícios e, assim, seduzir o comprador. Há quem use de cantoria, carisma, grito, lábia e até a vida pregressa cheia de erros. Não se pode esquecer ainda os que metem Deus e Jesus no meio, tampouco os que apelam para a emoção, com provas documentais de suas misérias. Trazem chagas, laudos e receitas médicas para salvar a eles ou a um filho ou outro parente muito próximo.

Quase ninguém fala da conjuntura - pelo menos nunca vi nem ouvi. Ninguém começa com um: vivo no Brasil desde que nasci, o mesmo Brasil que existe há 522 anos, e o cenário é esse: guerra, pandemia, crise do capitalismo, necroliberalismo galopante, apocalipse climático, intolerância política, um presidente que anda de jet-ski (de novo!), enfim, a idade média, com sinal de wi-fi e, ainda assim, não para todos. Estou aqui e vocês já deveriam saber o porquê. Se podem, comprem. Se não, entendo, afinal, estamos todos no mesmo barco, ops, no mesmo ônibus.

Emily também não foi por aí. O pregão dela era pessoal e intransferível e começou muito bem.

Fez uma microanálise da concorrência e atentou para os rapazes com tornozeleiras ou os que expunham sem mais nem menos a colostomia para o horror de quem assistia. Falava forte e com decisão, uma mão gesticulava, a outra segurava a barra metálica. Não distribuía os biscoitos de Abaeté e depois os recolhia, como grande parte faz quando quer vender suas bugigangas. Não, ela queria antes convencer o comprador, queria vencer, mas não pelo cansaço. Estava atenta, focada, firme no propósito.

E foi quando soltou a palavra sonho, que ela me fisgou.

Quem ainda sonha a essa altura do campeonato?, pensei.

Como um Martin Luther King, disse, mais ou menos, assim: todos que vêm aqui tem um objetivo e o meu é realizar um sonho.

E o sonho de Emily boiou, entre um solavanco e outro, dentro do busão. Havia ali uma estratégia emocional. Porém, os passageiros permaneceram imóveis. Uns olhavam evasivos a rua pela janela, protagonistas de um clipe do Roxette, outros não ouviram nada porque seus mundos estavam na palma da mão dentro do celular. Teve quem fechou a cara por ser antipático por natureza.

Emily carrega um sonho, mas, no momento, o real lhe obriga a vender o que tem de ônibus em ônibus, de parada em parada. Passou por mim desajeitada sem perder o imponente porte. Negra, designada homem no nascimento, de asas nas costas, bela, esperançosa, indestrutível, anjo torto. Sentou-se em uma das cadeiras do fundão. Me virei para trás, fiz um sinal e comprei a mercadoria. Dispensei o troco, no que ouvi dela, entre surpresa e agradecida, um deus te pague.

Para Freud, o sonho é a uma realização disfarçada de um desejo reprimido. Para o poeta, matéria prima e criação. Para o jogador do jogo do bicho, a chance da fortuna. Para a debutante, a festa. Para a noiva, o sim. Para o pesadelo, o contrário. Para o operário, a revolução. Para todos nós, o que aconteceu à noite passada e nem lembramos mais. Para Emily, ser maquiadora.

Era o que ela sonhava enquanto conferia as moedas.

Com Emily, não pude deixar de me lembrar de uma peça de teatro que vi há muitos anos, escrita por um poeta e dramaturgo espanhol, Calderón de la Barca, morto há 340 anos. Era sobre um filho de um rei que é renegado pelo pai e trancafiado em uma torre. Em um dos trechos, o escritor lança:

Sonha o rico sua riqueza

que trabalhos lhe oferece;

sonha o pobre que padece

sua miséria e pobreza;

sonha o que o triunfo preza,

sonha o que luta e pretende,

sonha o que agrava e ofende

e no mundo, em conclusão,

todos sonham o que são,

no entanto ninguém entende.

Eu sonho que estou aqui

de correntes carregado

e sonhei que em outro estado

mais lisonjeiro me vi.

Que é a vida? Um frenesi.

Que é a vida? Uma ilusão,

uma sombra, uma ficção;

o maior bem é tristonho,

porque toda a vida é sonho

e os sonhos, sonhos são.

Emily desceu na Almirante Barroso, ali por São Braz, altiva, de olhos de fogo e os sonhos nas mãos, a correr atrás da vida, talvez sem se tocar que vida e sonho se misturam e, enquanto uma não acaba e o outro não se realiza, há um intervalo de crueza e cansaço, de perda e fracasso, que transforma um e remodela o outro ao longo desse curto caminho entre sonhar e viver.

Anderson Araújo é escritor e jornalista da equipe do Dol e escreve às quintas.

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Outras crônicas do autor em daquitescrevo.blog

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