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Não há caminho do bem nem estrada da perdição para Ezequiel

O jornalista e escritor Anderson Araújo traz um conto sobre a perda de um "inimigo" de infância, memórias e sobrevivência na Belém dos anos 1990. Leia a crônica da coluna semanal com textos literários publicados sempre às quintas-feiras.

Imagem ilustrativa da notícia Não há caminho do bem nem estrada da perdição para Ezequiel camera Arte: Emerson Coe

Estou diante do espelho. Agora sou um homem. Desses comuns, medianos. Já me achei feio demais pela magreza, pela acne, pelos olhos fundos e tristes. Hoje nem tanto. Vejo o reflexo e algum cansaço nas rugas e algum descuido na forma do corpo e nas roupas. Feiura, não mais. Ficou pra trás essa autopiedade.

Também não importa mais. Alguma coisa no conjunto deve funcionar. Funcionava mesmo quando me via com desprezo. Agora me olho com certo orgulho de quem sobreviveu. Talvez seja isso, a beleza do sobrevivente. Horrível mesmo é morrer. O que eu nunca quis.

Poder olhar ao redor, enxergar-se e dizer somente para si: ainda estou aqui, ainda estou vivo, apesar de todas as catástrofes, desprezos, tropeços e perdas levem um pouco do que fomos. O que sobra é outra coisa. É palafita erguida sobre entulho, muito mais sólida do que se possa imaginar. É fortaleza de pedra à beira-mar, embora vazia de exércitos e repleta de fantasmas. Escapamos muito, testemunhamos tudo. Estamos grávidos de memórias de tantas vezes que quase partimos. Dentro desse antes oco, agora repleto, há algo que brilha.

É um processo muito individual. Alguns alcançam, outros não. E, como dizem os tolos, está tudo bem. Às vezes, é coisa que cedo se percebe — quanto mais cedo melhor. Em outras ocasiões, demora tanto que, quando vem, já é muito tarde e a vida está no finzinho. Já se apanhou e se perdeu tanto que, entender ou não, não faz diferença alguma, porque tu já és um fantasma que está lá e viu as coisas ruírem ao redor sem entender os motivos para permanecer.

Às vezes, acontece do nada, sem muita explicação, como ocorreu comigo.

Era dezembro e estive longe de casa por tanto tempo que já havia perdido a lembrança sobre os caminhos que conhecia de cor. Não estive no deserto ou em alto mar ou coisa que o valha. Só me afastei para ganhar a vida e camelei feito um mouro de sol a sol. Estive cansado e de olheiras profundas, envelhecido uns dez anos. Voltei com um carro novo, algumas viagens nas costas e dinheiro no bolso, o que era inédito e quase um milagre até então.

Diziam, sem certeza e de forma exagerada, que eu havia vencido. Não poderia ser um engano maior. Era só um adulto sobrecarregado de trabalho e exausto em um relacionamento infeliz e desacreditado do futuro. Vivia como se fosse morrer em uma semana, não acumulava absolutamente nada e concentrava minha fúria e tristeza no trabalho e no álcool, quando era possível fugir da realidade. Por fora, era o filho do prestação com a doméstica que estudou e conseguiu um bom emprego e vivia bem com as tralhas acumuladas e relações que as pessoas esperam que todos tenham quando passa a juventude. Por dentro, um colapso.

Entrei devagar na passagem. Há anos já tinha asfalto, e quase ninguém recordava as pontes de madeira improvisadas e apodrecidas, porém o chão era irregular, havia lixo no meio-fio e tijolo e areia se amontoavam defronte às residências à espera de reforma. Os velhos casebres de tábua e cores sem harmonia da época das enchentes continuavam lá. Algumas empenadas ensaiavam um desmoronamento, no entanto permaneciam de pé, como um arremedo de uma obra de Gaudi na minha Pedreira. Cachorros magros e poucas crianças remelentas nos batentes das portas. Era de manhãzinha. Só algumas caras ressonadas em poucas janelas vieram olhar quem chegava.

Passei diante de uma das casas e vi a cortina preta de veludo fajuto com brocados dourados e o velório lá dentro, como antes se fazia quando se perdia um parente: defunto na sala, coroas de flores de papel, crucifixo de prata, cheiro de velas acesas, a família insone, café e bolacha-maria. Ninguém velava seus mortos em capelas de planos funerários. A morte era uma ilustre visitante e ocupava todo o espaço.

Ele havia sido o último de nós, meninos perdidos que brincávamos e brigávamos naquele pedaço enlameado de mundo. Tinha mais ou menos a minha idade e conflitos com a lei. Nunca fomos chegados. Muito pelo contrário, guerreamos muitas vezes e até houve uma rixa, que esmaeceu conforme me abandonei em qualquer lugar que não existissem ameaças contra mim. Ezequiel foi uma criança difícil. Depois, um adolescente irascível e, mais tarde, um adulto soturno, que exalava selvageria, cercado de histórias mal contadas sobre seus feitos e defeitos.

Perdemos o contato muito antes de nascer o primeiro pelo na minha barba, mais ou menos quando entrei na sala de leitura da escola Alzira Pernambuco e percebi que havia novas portas para arrombar e novos quintais para invadir. Ele era valente e eu, um rato. Morria de medo de tudo e tinha minhas batalhas internas a vencer. Não precisava de novos inimigos.

Assim crescemos. Eu, encolhido na minha covardia que me levou por caminhos que ele nunca veria. Ele, na sua coragem bruta que lhe deu fama de mau e consideração entre os seus iguais. Ao redor dele, uma muralha de dor, sangue e perigos que eu jamais ousei sequer olhar por cima para ver o terror que havia do outro lado.

Diferente do que dizem, esse papo de caminho do bem não existe, menos ainda a estrada para perdição. É o mesmo itinerário, o qual cada um atravessa em silêncio como pode, como consegue, com as armas que tem, no tempo que lhe cabe, guiado por vozes que não se tem muita consciência de onde vêm nem clareza sobre o que dizem.

A caminhada dele havia terminado. Estava agora em um caixão barato, o corpo rasgado pelas balas, mortificado pelo chumbo. Não tive como não lembrar de quantas vezes desejei aquela morte quando erámos garotos.

- Por que essa desgraça não morre? Bicho ruim.

Uma retórica dos derrotados, dos apavorados, dos impotentes, dos sedentos pela vendeta. Da boca pra fora, do fundo do coração. Agora não fazia sentido nenhum.

No impulso, pensei em parar e descer para olhar o defunto. Depois recordei que não tinha intimidade alguma com aqueles vizinhos. Vi dona Goreth, a mãe, de rosto inchado e devastada de tanto chorar e seu Tadeu, o pai, pesaroso, olhos vazios, a expressão gravíssima. Duas pessoas honestas, batalhadores, agora cobertos de dor. Era o fim de uma luta para os dois, cuja derrota estava escrita desde quando deixavam o menino sem roupas em casa, como castigo para não sair à rua, e ele fugia nu. Como se a sua vontade de viver e transgredir fosse maior do que qualquer vergonha e o mundo, uma imensa praia de nudismo.

Quando parei o carro, percebi. Foram muitos os mortos da mesma faixa etária que eu. Aqueles com quem convivi. Ezequiel era um dos últimos. Todos pretos e pobres ou quase pretos ou quase pobres ou quase brancos de tão pobres, como eu. Os que se perderam na mudança do tempo, entre a ingenuidade das nossas estivas que costuravam nossas ruas alagadas e as guerrilhas nos becos e largas avenidas, para se firmar como homens, ganhar respeito, alguma emoção, território e algum dinheiro para dar garantia.

Meu melhor amigo da primeira infância com quem estourava os mijos-de-macaco no caminho da aula. Dois colegas que aprenderam a ler e a tabuada junto comigo na professora Lucinha. Descartável, Dunga, Pinel, Marquinhos, Nazareno, Zé Garrafa, Dedinho e tantos outros. Agora ele, meu rival, às no papagaio, perseguidor de gatos, terror da vizinhança nos anos de frieiras e urtigas.

Houve ainda os que não partiram, mas estavam desprezados e escravizados em subempregos, cheios de filhos e ex-mulheres, atormentados em dívida e sem crédito, sem rumo, sem valor, sem futuro à vista ou a prazo. Houve os que enlouqueceram e estavam para sempre calados porque não havia nada para contar nem sonhar. Houve ainda os esquecidos para sempre, jamais mencionados por ninguém.

Minha situação era diferente. Entretanto, no fundo, viver e morrer naquela baixada nos marcaria a vida inteira. Não estive melhor nem pior do que os de minha geração e cada um deles, assim como eu, tentamos escapar dentro das nossas frágeis possibilidades. Alguns tiveram mais sorte ou mais azar do que outros ou as variáveis infinitas da vida se cruzaram deste ou daquele modo que resultou em vitória ou derrota, em um ou outro destino, em estar vivo ou morto. Nada é tão fácil assim.

Abri a porta e senti o cheiro do café, vi a desarrumação rotineira e a luz difusa na casa que levei cinco anos para erguer feito um obcecado. Um sobrado amplo e confortável por dentro e feio e mal-acabado por fora. Meu pai doente e silencioso no antigo quartinho de mercadorias. Achei minha mãe na cozinha, as mãos e as roupas molhadas à beira da pia, e ela me cumprimentou sem muito calor, como se eu não estivesse longe tantos meses.

- Soubeste que ele morreu?

Respondi e me sentei à mesa, em silêncio, sorvi o conteúdo da caneca que me foi servida, queimei a língua. Então, com algum atraso e tomado de certeza, percebi que havia sobrevivido.

Anderson Araújo é escritor, jornalista da equipe do Dol e escreve às quintas.

Crônica publicada originalmente no blog Daqui te Escrevo sob o título “Antes desse dentro oco, agora repleto”.

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