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DAQUI TE ESCREVO

Eu nunca fui tão feliz ao longo de toda minha vida

O que te faz feliz de verdade? Você já esteve completamente feliz algum dia? O jornalista e escritor Anderson Araújo apresenta um conto sobre a vida e a felicidade de um homem comum, na coluna Daqui te Escrevo, publicada nesta quinta-feira (19).

Imagem ilustrativa da notícia Eu nunca fui tão feliz ao longo de toda minha vida camera Arte: Emerson coe e Thiago Sarame

Primeiro chegou uma geladeira. Era a minha primeira. Enorme, autolimpante, frost free, com porta dupla e congelador bem grande. Depois instalaram um ar condicionado, também novinho. Nem preciso dizer que também nunca tive um desses. Na mesma semana, os homens chegaram e reformaram meu quarto. Tiraram as goteiras e infiltrações, refizeram a parte elétrica, pintaram as paredes e decoraram alegremente. Ao lado da cama, puseram uma mesa de cabeceira retrô ornada com um vasinho de flores. A velha janela, agora de um verde esperança viva, vestiu-se com uma cortina rococó esvoaçante e meus velhos livros foram desempoeirados e guardados em uma estante moderna. Parecia outro lugar em menos de uma semana.

- A gente vai dar um jeito nesse banheiro também. Vamos reavivar tudo. Logo fica lindo pra ti.

- Que isso! Não precisa se preocupar. Já está ótimo.

Era uma tia. Rica, dessas que tem empregados e apartamentos de luxo em cada cidade onde tem negócios. Ela havia perdido o interesse pela parte pobre da família havia uns anos. Mal nos falávamos e a conexão, que tivemos outrora, mingou, além das óbvias divergências políticas que nos afastavam. Antes de sair, me prometeu voltar. Bem instalado por lá, apreciei meu lugar, agora com outra cara.

À noite, uma amiga me visitou. Os parentes já tinham ido embora e ela trouxe petiscos e três garrafas de vinho. Também fazia muito tempo que não nos víamos.

- Nem posso, mas vou aceitar.

- Vou pôr nossa playlist pra tocar.

Compartilhamos a bebida e as comidinhas. Sem muito assunto, permanecemos calados. Até que ela começou a chorar. Era um chorinho fraco, com pequenos fungados, no começo. Depois as lágrimas desceram com força. Me aproximei e ofereci meu ombro pra consolá-la. Com naturalidade, deitamos na cama e ela se aconchegou em meus braços.

Nossa respiração se sincronizou e os soluços dela se transformaram em um arfar mais compassado. Ela beijou meu pescoço, depois minha face e meus olhos, meu nariz e por fim estacionou na minha boca com os lábios entreabertos. Sorvi o beijo e o bom hálito doce e limpo dela. Em quase 15 anos como amigos, nunca havíamos trocados nenhuma intimidade daquele tipo. Era uma mulher inteligente e bonita, de personalidade e formas que gosto. Em silêncio, tirou a roupa e deu sequência ao que havia começado. Gozamos praticamente juntos, com ela primeiro e de modo mais intenso.

Leia mais: Era um homem comum, como todo monstro capaz de atrocidades

Continuamos a noite. Nos tivemos uma segunda vez, muito desajeitados pelo álcool e, desta feita, sem prantos. De manhã, ela levantou e fez nosso desjejum. Ela tentou me beijar e recuei para que não sentisse meu bafo matinal. Me prometeu retornar e fechou a porta com um cuidado redobrado. Fiquei na cama com os olhos no teto. Tomara que isso não afaste a gente, nem acabe com nossa amizade, pensei.

Não fiz nada naquela manhã e, por volta do meio dia, alguém bateu à minha porta. Abri e o homem me sorriu e apertou minha mão com um entusiasmo exagerado. Como tem passado, me perguntou. Bem, respondi. Posso entrar? Claro, claro. Pedi pra sentar e ofereci café da garrafa térmica. Ele sorveu com barulho a bebida meio morna e, atabalhoado, tirou o maço de dinheiro do bolso da calça.

- Vim te pagar. Já tá com os dez por cento combinado. Foi mal pela demora.

Contei o dinheiro e agradeci. Ele foi embora.

Ao longo do dia, recebi ligações. A gerente da firma, um afilhado, dois ex-colegas, um primo que tinha sido meu melhor amigo no tempo de criança. Minha mãe à noite apareceu com compras modestas. Mesmo com dificuldade para se locomover próprias da idade, me trouxe pães, o feijão que havia acabado, umas bananas, alface e coentro. Junto com ela, veio uma pastora evangélica, velha conhecida nossa. Tivemos uma infância comum e, depois se estragar vida afora, ela se converteu e agora pregava.

- Vim fazer minha oração. Eu posso?

Fiquei constrangido e não consegui negar. Ela não sabia que eu era ateu, mas não quis contrariá-la. Não era hora de discutir a existências de Deus.

Segurou forte minha fronte e disse as palavras com um dos braços levantados, muito exaltada, quase sem espaço para respirações, enérgica, altissonante, de olhos fechados

- Amém?

- Oi?

- Diz amém também. – Minha mãe recomendou.

- Ah, sim, claro: amém.

E assim foi nos dias seguintes. As pessoas surgiam, com atenção redobrada e certa reverência, como se eu fosse um Dalai Lama. Numa noite, uma conhecida, com quem tinha trocado poucas palavras, pediu para aparecer. Aceitei e ela também trouxe bebida. Dessa vez, recusei. Ela guardou as garrafas e fez muitas perguntas, como se fosse uma agente do IBGE ou um repórter novato. Já estava enfadado na hora em que ela avançou sobre mim. Depois que terminou, vestiu-se e me desejou boa sorte. Em um mês, outras cinco mulheres, como ela, também brotaram do nada com igual intenção e eu tive que botar alguma ordem e rejeitar essas visitações íntimas.

As coisas, por incrível que pareça, caminhavam muito bem. Eu nunca havia estado tão feliz em toda minha vida. Principalmente por acreditar que a felicidade era um conceito ultrapassado e fugidio, coisa de fim de novela ou de gente tola, papo furado para vender livro de autoajuda. Parece que eu estava bem enganado. Meu estado de satisfação e plenitude era real e não havia como ignorá-lo. Pela primeira vez, sentia uma estabilidade palpável e um sentido em todas coisas, como se pudesse enxergar minha linha do tempo inteira, amanhã, hoje e ontem.

Leia mais: Às vezes, o brilho do ouro é só ferrugem na memória

Acordava e me olhava no espelho. Era um homem, ainda jovem, de físico íntegro, de nascente barriga, alma levemente conturbada, psicológico abalado dentro do esperado para um macho adulto latino-americano nascido no século 20, emocionalmente instável e com baixa autoestima, mas, diante do meu próprio reflexo, matutava: quem está bem realmente nessa idade? Quem está totalmente bem em qualquer idade? Talvez um galã de cinema ou de televisão? Um jovem bilionário europeu? Alguém pobre com sérios problemas de cognição? Decerto, pouquíssima gente.

Tinha quase nada de cabelos brancos sem sinal de calvície grave, nem bonito para chamar atenção demais por onde pisava, nem feio em demasia para sofrer com sucessivas rejeições. Havia realizado pouca coisa até ali, nada memorável, e bens materiais não possuía nenhum naquele momento. Era a conjuntura, eu me auto justificava. Havia problemas, havia lacunas, havia coisas a conquistar, havia provações, mas e daí? Havia também muito cansaço, injustiças, obstáculos intransponíveis, falta de tempo e de condições materiais. Sempre haverá pendências e demandas, muitas delas não vou conseguir resolver. Nem eu, nem ninguém.

Os parentes e amigos continuaram no revezamento das visitas e me deixavam irritado, no entanto, entendia e os aceitava. Não faziam por mal e também tinham as comidinhas, os mimos e até a rara e boa companhia de alguns. Nos intervalos com minha solitude, meu tempo era livre e passei a me exercitar com moderação e ler minha pilha de livros atrasados. Aproveitei ainda para escrever com constância poemas de amor, que se acumulavam para um dia, quem sabe, rechearem um livro.

Saía à rua e os vizinhos me cumprimentavam com alegria e cerimônia. A mulher que eu gostava e desejava passou a me dar uma discreta, mas frequente, atenção. Me enviava mensagens e conversava por um tempo considerável. Era alta, maciça e tinha belos grandes olhos escuros. Chamei-a para vir me ver e ela prometeu aparecer, mas só se minha mãe estivesse na minha casa. Eu queria comê-la, mamar naqueles afáveis peitos, sentir o cheiro dos cabelos, vasculhá-la com os dedos, prová-la por dentro, dizer que havia esperado por tudo aquilo e tanto por longo tempo. Todavia, o interesse dela por mim era outro. Me coube respeitar e mantivemos esse contato amistoso e regular, meio sem sal e pueril, que me satisfazia.

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Minha amiga, a dos vinhos, retornou, finalmente. Dessa vez não trouxe nada e entrou como se a casa fosse dela, muito despachada e alegre. Improvisamos o almoço e pedimos cerveja pelo delivery. À tarde, assistimos a dois filmes: O bebê de Rosemary e Tudo sobre minha mãe – dormimos no meio do Almodóvar. À noitinha, caminhamos no bairro de mãos dadas contra a brisa fresca. Ela falava e gesticulava muito, como sempre, e pensei que deveria me apaixonar por ela, apesar de saber que essas coisas não acontecem por escolhas racionais. Se pudesse, seria perfeito.

- No que está pensando?

- Nada.

- Fala logo.

- Sei lá. Faz tempo que a gente não tem esse tempo todo juntos.

- Acho que desde o Segundo Grau.

- Pois é.

Retornamos pra casa e conversamos mais na sala. Depois fomos para o quarto e comungamos novamente de um confortável silêncio, dos silêncios que não provocam nenhuma ansiedade ou mal-estar e só são possíveis com tempo de intimidade e compreensão e aceitação mútuas. Até que interrompi e perguntei se ela dormiria na minha casa e se iria comigo no dia seguinte de manhã. Ela respondeu positivamente e me senti calidamente alegre por tê-la no mesmo espaço, no mesmo planeta, tão próxima, que era possível sentir o cheiro da pele, dos cabelos e da respiração dela. Adormecemos de frente um pro outro, as mãos unidas.

Acordamos no nascer do sol. Era junho e o céu luminoso engolia o mundo com seu manto anil manchado pelo rosa da aurora. Lá fora, poucos carros se atreviam a quebrar o frescor macio da manhã e as donas de casa ainda estavam deitadas ao lado de seus maridos imprestáveis, e as crianças sonhavam que não precisavam ir à escola.

Na minha cozinha, minha amiga fez um café coado bem forte e pelou a língua por beber com certa pressa. Estava bonita, de banho tomado e os olhos inchados de sono. Me abraçou sem muita energia por causa do horário. Calcei os sapatos, chequei se estava tudo trancado, bati a porta e rumamos para minha primeira sessão de quimioterapia.

- Tá com medo? – Ela me perguntou, sentada ao meu lado no ônibus.

Continuei a olhar a rua pela janela, ouvir o ronco do motor e sentir o ar e as luzes matinais, sem dizer nada até nossa descida.

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Anderson Araújo é escritor e jornalista da equipe do DOL e escreve às quintas-feiras,

Mais contos como este você encontra no blog do autor, oDaqui te Escrevo.

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