Existem poucas coisas tão traiçoeiras quanto memórias: são criadas, inventadas, implantadas, distorcidas, esquecidas e relembradas. Quantas vezes nossa certeza de que algo aconteceu se esvai frente à prova do contrário? Quantas vezes atenuamos ou intensificamos sentimentos que certas memórias fazem brotar? 

E, igualmente traiçoeiras, as memórias são sedutoras. Afinal, quantos sentimentos são possíveis evocar por meio de uma lembrança? Felicidade, euforia, curiosidade, ternura e até mesmo abandono. 

É nessa areia movediça e mutável que Dia Nobre baseia seu segundo livro, “No Útero Não Existe Gravidade”, publicado pela Editora Penalux em 2021 e lindamente ilustrado por Monique Malcher. Apesar de ter sido recentemente lançado e ser apenas o segundo livro de ficção da autora pernambucana, a obra já constou entre os finalistas do prêmio Caio Fernando Abreu. 

O livro gira em torno das memórias de uma personagem inominada. Muitos apontam que o livro teria caráter autobiográfico. Questionada, a autora prefere aproximá-lo da autoficção, uma espécie de biografia onde nem tudo que está escrito de fato ocorreu (como a maior parte das biografias, diga-se de passagem), mas que continua sendo, ainda assim, real. 

Ainda que curto – o livro possui um pouco mais de 100 páginas-, “No Útero Não Existe Gravidade” está longe de passar despercebido. O livro coloca em pauta temas profundos e tidos muitas vezes como tabus. Encontramos fortes questionamentos sobre a maternidade, saúde mental, abandono e as marcas que carregamos desde a infância. 

A autora escreve consciente do balanço causado pelas memórias: esquecidas por nós de forma tão fugaz ou marcadas tão profundamente na nossa pele. Esse, para mim, é o grande trunfo da autora: adaptar-se às memórias e à sua maleabilidade, formando um forte fio condutor, que nos agarra ao livro de tal forma que é impossível deixar essa leitura pela metade. 

A escrita de Dia Nobre apresenta momentos de flutuação e deslocamento, nos permitindo um olhar mais sóbrio sobre o tema. Mas, logo no momento seguinte, a autora não hesita em mergulhar fundo nas lembranças dolorosas, nos tirando do “contorno” e nos empurrando para a primeira queda após o nascimento, a qual nos permite sentir efetivamente a força da gravidade-realidade. Afinal, como o título nos informa, no útero não existe gravidade. 

Obra de Dia Nobre tem ilustrações de Monique Malcher Foto: Reprodução

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