Um brasileiro compra um quadro de Van Gogh por milhões de reais, mas um terceiro se apossa da tela logo após o negócio. Anos mais tarde, a pintura aparece numa parede de um museu de Detroit, nos Estados Unidos, numa grande exposição da carreira do artista holandês. O brasileiro, então, entra na Justiça americana para reaver a posse.
Este enredo está se desenrolando agora em torno de "A Leitora de Romances", um óleo pintado por Van Gogh no final do século 19 que ficou em exposição até este domingo (22) no Instituto de Artes de Detroit.
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A tela, como o nome indica, mostra uma mulher lendo um livro e teve sua venda concretizada em 2017 por US$ 3,7 milhões, segundo documentos enviados à Justiça americana pelos advogados de Gustavo Soter, uma figura conhecida do mercado de arte brasileiro e do jet set de Miami.
Uma busca por seu nome na internet mostra uma foto sua numa festa de brasileiros descolados no balneário americano, registrada pela coluna social do site Alô Alô Bahia. Mostra também uma série de processos.
Soter foi preso em flagrante em 2005 por vender 60 comprimidos de cloridrato de oxicodona obtidos sem receita médica, tendo recebido por isso R$ 4.350, segundo um processo disponível para consulta pública no site do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
A oxicodona é um opioide poderoso contra a dor, similar à morfina. Por ser altamente viciante, ela esteve no centro da crise de opioides nos Estados Unidos, sendo considerada pela agência de saúde federal americana como uma das três medicações que mais causou mortes por overdose no país, ao lado da metadona e da hidrocodona.
CONTROVÉRSIA SOBRE O DONO DO QUADRO
De volta a Van Gogh, o contrato de venda mostra que a tela foi vendida a Soter pela Torrealba Holdings, uma empresa com sede nas Ilhas Cayman, um paraíso fiscal. Contudo, há uma controvérsia a respeito do dono do quadro. A tela seria, na verdade, de um colecionador carioca.
A reportagem conversou com o suposto dono verdadeiro do quadro, um profissional do mercado de arte que prefere não se identificar. Ele diz ter medo de sequestro caso seu nome seja divulgado, devido ao valor da obra em questão.
Segundo ele, Soter agiu apenas como agente de venda do Van Gogh. Isto é, Soter nunca foi dono do quadro. Ele teria apenas conectado vendedor e comprador, ganhando uma comissão. Após concluída a negociação e entregue o quadro, Soter teria tentado extorquir o colecionador, pedindo mais comissão do que o combinado. A história foi corroborada por outra fonte do mercado de arte.
Soter, em e-mail conjunto com seus advogados, afirmou à reportagem que os documentos apresentados à Justiça provam que o quadro do Van Gogh é seu desde maio de 2017. Desde então, Soter "não transferiu a propriedade para ninguém", dizem. Eles acrescentam que ninguém demonstrou na Justiça que é mais dono do quadro do que Soter. Ele não respondeu à alegação de que teria sido somente o intermediário da venda.
O colecionador carioca que seria o verdadeiro dono do quadro conta também que, antes de comprar o Van Gogh de Soter, já tinha feito outros pequenos negócios com ele, com quem mantinha uma relação. Diz ainda que Soter frequentava a sua casa e via a pintura de Van Gogh lá. Esta informação contradiz a versão de Soter, que afirmou à Justiça americana desconhecer por anos o paradeiro da obra.
Questionado pela reportagem, Soter afirma que "concedeu a posse da pintura a um terceiro para mantê-la antes de uma possível venda futura" e que, em determinado momento, este terceiro cortou a comunicação com ele. Desde aquele momento até a obra aparecer no Instituto de Artes de Detroit, Soter alega que desconhecia o status da pintura.
Soter afirma ainda que não avisou a polícia do desaparecimento de um quadro avaliado em milhões porque "sempre teve a esperança de que esta situação se resolveria sem a necessidade de uma ação legal". Segundo o Instituto de Artes de Detroit, o quadro não consta na lista do FBI de obras roubadas nem nos registros do Art Loss Register, uma entidade privada que rastreia obras de arte roubadas.
ORDEM JUDICIAL
Desde que Soter entrou na Justiça para reaver o quadro, no início de janeiro, ele conseguiu uma ordem impedindo que o museu faça qualquer coisa com a obra ao fim da exposição "Van Gogh in America". Assim, a pintura não poderá voltar para o colecionador brasileiro de quem foi emprestada.
A informação de que a obra é parte de uma coleção brasileira é do próprio museu, que não divulga o nome do colecionador. Este anonimato é comum no mercado de arte.
O Instituto de Artes de Detroit nunca foi acusado de má conduta ao exibir a tela. Além disso, um juiz disse numa audiência na quinta-feira (19) que o museu "não tem culpa" da situação na qual se viu enredado.
A audiência foi o último desenvolvimento legal do caso até agora, mas não resultou em nenhum veredito. O magistrado pediu aos advogados de Soter e do museu que se entendam, e deu tempo para isso, dizendo que só vai tomar uma decisão em último caso.
Um representante do museu afirmou à reportagem que a instituição não vai comentar o caso enquanto a corte não se manifestar.
Independente do desfecho, o caso traz prejuízo financeiro à obra, diz a galerista Antonia Bergamin, com experiência na negociação de obras de arte de alto custo. Isso porque pode haver uma depreciação de seu valor de mercado devido ao envolvimento num imbróglio jurídico.
Embora não haja uma cifra exata, os advogados de Soter estimam que a tela valha hoje US$ 5 milhões, o equivalente a cerca de R$ 26 milhões.
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