"São João, São João, acende a fogueira do meu coração!" Junho traz lembranças ternas para muita gente. Muitas que aguçam os sentidos, como o olfato. Quem não lembra do aroma das comidas feitas com o milho verde, as fogueiras crepitando fagulhas e até a pólvora das bombinhas soltas nos terreiros e festinhas durante a infância?
Esses são aromas básicos para quem viveu as festas juninas, mas há os que levam muito mais a sério o período reservado ao principal santo do mês e se banham à meia noite com as ervas aromáticas pedindo principalmente sorte, felicidade e dinheiro. O banho de cheiro é o grande momento para os que aproveitam o dia 24 para atrair tudo o que é bom.
Passada de avós para os netos e de mães para filhos, essa tradição permanece viva nas noites quentes de Belém do Pará. Quem disser que ela está morrendo será contundentemente corrigido por qualquer erveiras que prepara esses banhos para clientes frequentes, que não deixam de buscar as bençãos de São João.
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Quanto mais perto do dia do santo mais gente à procura do banho ou das ervas. Há casos de filas e encomendas feitas com bastante antecipação. Para encontrar as ervas do banho de cheiro de São João, qual o melhor lugar que não o Ver-o-Peso? Pois bem, visitamos a maior feira a céu aberto da América Latina para encontramos personagens que contam e defendem essa a tradição de séculos.
De cara achamos a famosa Beth Cheirosinha, de 73 anos. Figura carimbada na televisão e na Internet quando o assunto é "Veropa", há 52 anos ela vende ervas por lá. Todo mês de junho ela é procurada por seus fiéis fregueses que buscam pelo banho em louvor a São João. A poção mágica, com poderes de abrir caminhos e atrar vibrações positivas, segundo ela, é composta por ervas, como o manjericão, a pataqueira, a chama, o abre-caminho, o dinheiro em penca e muitas outras.
“O banho de São João abre os caminhos, atrai a sorte, felicidade, saúde… tudo isso tem no banho de São João. Ele era um santo festeiro, tanto é que você vê por aí muitos terreiros que tem a imagem de São João. Quando ele andava no mundo, ele gostava de fazer festa”, explicou.
A receita é abrir os caminhos
O banho tem uma fórmula específica? Não! Todas as erveiras têm seu toque especial, o que as torna únicas em um universo de religiosidade, fé, tradição, aromas e cores. O banho é preparado um dia antes dos festejos de São João, em 24 de junho, devendo pegar sol e sereno para estar pronto à meia-noite do dia 24.
Iracilda Siqueira , que trabalha há 45 anos na feira do Ver-o-Peso, conta que nem todo mundo sabe fazer o banho de cheiro, um conhecimento que é adquirido durante anos. “É um segredo, o segredo da casa, 45 anos né, meu filho, é uma escola”, disse.
Tradição. Talvez seja a palavra que ilustra a cultura do banho de cheiro e das erveiras do Pará. As barracas, procuradas todos os dias, guardam histórias específicas, sobretudo de família, que carregam a cultura de geração em geração.
“No meu caso, é quinta geração [da família], era da minha vó, passou pra minha mãe, da minha mãe passou pra mim e eu já estou passando para filhos e netos. Esse bloco de ervas são 80 barracas, então elas fazem parte da nossa cultura paraense. Não pode morrer [a tradição]. Quem vai se acabando somos nós, mas a cultura vai ficando. Eu, amanhã ou depois, quem sabe eu não possa mais vir, mas tenho pessoas que já estão no meu lugar”, disse Beth Cheirosinha.
As ervas podem ser divididas entre brabas e sofisticadas, cada uma possuindo sua função em um banho. No de São João, se sobressaem as sofisticadas, que são ervas selecionadas, como a catinga de mulata, manjericão e pataqueira, ervas cheirosas, que chegam até as erveiras através do caboclos do interior, logo nas primeiras horas da manhã. Já as brabas, servem para o descarrego, não muito comuns nesta época do ano.
“O banho [de São João] é para dar sorte, felicidade e prosperidade, é um banho atrativo, diferente de outros banhos, como é o caso do descarrego. O descarrego é fedorento, feito com amoníaco, cachaça, já leva outro tipo de erva. O banho atrativo [de São João] é diferente. Você mistura o atrativo com água, toma seu banho e depois joga o líquido da cabeça aos pés. Tem que ficar com ele no corpo e se enxugar no vento”, explicou o erveiro Raimundo Gonçalves, que vê a tradição como um grande mistério.
Tradição viva!
A tradição do banho de cheiro permanece mais viva do que nunca, com algumas mudanças que a vida moderna e corrida das grandes cidades exigem, porém sem deixar de recorrer ao poder místico das ervas do santo, que pela tradição católica é primo de Jesus Cristo, filho de Izabel e Zacarias. Dentre as modificações observadas, está o banho "pronto": antes os adeptos dessa prática buscavam as ervas nas feiras e se encarregavam do preparo em casa. Hoje levam o infusão em garrafas, tudo prontinho apenas para se banhar na passagem do dia 23 para o dia 24.
Veja o vídeo!
- Reportagem: Lucas Contente
- Edição: Anderson Araújo
- Imagens: Thiago Sarame
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