
Das muitas lembranças afetivas que eu tenho com minha avó, uma das minhas preferidas é a nossa tradição das quartas-feiras: assistir futebol. Lembro de muitas vezes chegar na sala de casa e ela estar sentada na mesa de centro com os dedos cruzados gritando “Pra fora!” quando o time que jogava contra o seu estava no ataque. Já quando o goleiro tocava na bola antes de ir pela linha de fundo ela dizia: “Escanteio, menos mal” e sorria. Fui aprendendo assim a gostar desse esporte.
Outra lembrança, essa eu gosto menos, é que, quando criança, meus primos se reuniam em um bar perto da minha casa para ver um jogo e colocavam toldos cobrindo a grade que dava para a rua. Pequena, me esticava na ponta do pé para tentar ver alguma coisa. Quando me viam espiando, me mandavam ir embora porque ali ver futebol “era coisa de homem”.
Se pararmos para pensar, em 2025, não é raro ouvir histórias assim de outras meninas que cresceram no início do século e gostavam de futebol na infância. Para essa matéria, por exemplo, com as atletas que eu conversei e disse que “era sempre a única menina no meio dos meninos jogando, vendo jogos ou conversando sobre eles” elas me responderam: “Eu também era, sempre somos as únicas meninas”.
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Procurando entender porquê somos sempre as únicas meninas no meio desse monte de meninos bem aceitos nesse esporte, me interessei pelo futebol feminino e conversei com algumas atletas nos dois maiores clubes de Belém: Clube do Remo e Paysandu. Todas elas me relataram que enfrentaram, e enfrentam, todos os dias o machismo e o preconceito por serem mulheres e praticarem a modalidade.
Em alguns casos, nem precisou ser escrachado para eu perceber que a igualdade entre masculino e feminino ainda está muito longe de acontecer. Pequenos detalhes conseguiram deixar escancarado que omachismo está também nas entrelinhas, desde a falta de divulgação de jogos das meninas, espaço de qualidade para treinos e até mesmo a falta deles com menos de um mês para o início das competições nacionais.
Muito do que será escrito aqui foi feito do ponto de vista da minha observação e de alguns relatos que manterei em sigilo a pedido das entrevistadas. Entrei em contato com os clubes para pedir algum posicionamento e, até o momento, não obtive resposta. O espaço está sempre aberto para manifestações.
"Futebol feminino ainda é considerado futebol amador"
Naquela quinta-feira, pedi para acompanhar um treino do Paysandu Feminino e me deram o endereço de um campo próximo a minha casa, mas bem longe da estrutura do recém inaugurado centro de treinamento do clube. Foi meu primeiro questionamento com a situação do futebol feminino no Pará: Por que elas não estão treinando no CT?
Contextualizando: o campeonato paraense de futebol masculino está indo para a segunda fase e durante a semana que produzi esta matéria, os homens estavam treinando no CT, que conta com dois campos de futebol prontos e um terceiro em fase de construção, onde todos os dias eles, os homens, treinaram no local.
Será que não daria para as meninas, que também estão prestes a estrear em uma competição nacional, usar um dos campos para o treinamento? Ou, será que não seria possível revezar os dias entre homens e mulheres já que ambos defendem o mesmo clube?
Enfim, fui ao treino e conversei com Glazielle Perotes, de 36 anos, que joga futebol desde os 15. De sorriso fácil e um jeito despreocupado, ela parecia ser a mais experiente do time e todas me recomendaram falar com ela. Depois de uma certa relutância e um pouco de timidez, Perotes me contou que sempre gostou de futebol, jogava ‘travinha’ com os meninos da sua vizinhança e nasceu com a vontade de chutar a bola.

“Eu sempre gostei, acho que nasceu comigo essa vontade de jogar futebol, de chutar bola, de brincar. Eu me sinto muito feliz quando eu jogo, então não sei dizer de fato da onde surgiu a vontade, só sei que eu amo que eu faço”, disse a volante, que revela na sequencia que o futebol feminino ainda é tratado como amador no Pará.
Falar assim, ‘Ah, eu sou profissional há tantos anos’, eu não tenho como te falar isso, porque o futebol feminino no Pará é considerado futebol amador. Nós não somos profissionais, a gente não tem de fato um contrato para dizer: ‘Ah, eu sou profissional há tantos anos’ porque nunca assinei contrato com nenhum clube.
Grazielle Perotes, Jogadora de futebol"Vai lavar louça"
Mesmo sem contrato, é visível a dedicação que Perotes e o time tem com os treinos. Isso fica mais evidente quando lembramos o tanto que ocorre uma cobrança das mulheres no ambiente machista do futebol, todas querem se dedicar ao máximo para não dar margem a comparações ou frases preconceituosas. A volante especifica que já ouviu, entre muitas coisas, a mandarem “lavar louça” ou “fazer comida”.
Ainda longe de acabar o machismo dentro dos estádios, as evoluções com a modalidade como investimentos dos clubes e uma copa do mundo feminina no Brasil em 2027 são comemoradas pelas atletas, na esperança que haja o incentivo para que mais meninas pratiquem o futebol e sejam vistas com respeito pelas pessoas.
“Comparado há 15 anos, hoje em dia nós estamos muito melhor. Hoje em dia tu vês clubes fazendo grandes investimentos, pelo Brasil e fora do Brasil. Então muito mais meninas já vivem propriamente só do futebol. Hoje em dia é incrível, vai vir uma Copa do Mundo feminina aqui no Brasil. A gente espera que com isso cresça mais, evolua mais, as pessoas olhem para a gente de uma maneira diferente, com respeito, porque a gente não quer muito, a gente só quer respeito”, reflete Perotes.
“Viver propriamente só do futebol”, infelizmente ainda não é possível para as meninas do Pará. Muitas têm outros empregos ou são vendedoras para manter a renda da família, algumas com filhas pequenas que se distanciam das crianças para viver um sonho e precisam lidar com questões femininas como a amamentação e a menstruação. Além do machismo, elas também passam por outra forma de discriminação: a LGBTfobia, mas isso é assunto para uma outra matéria.
Veja o vídeo de Graziele Perotes:
"Um dia o futebol feminino vai ser muito valorizado”
Quando minha avó voltou para Belém anos após morar no interior, sua paixão pelo futebol não passou. Na Copa de 1950, quando o Brasil parou para ver a primeira copa do mundo no país, ela era proibida de assistir ao campeonato já que, naquela época, o futebol era proibido para mulheres. Durante nossas conversas, ela me contou que fugia de casa e ia escondida aoCinema Olympiapara ver as partidas.
Em 2007, quando eu queria ver minha primeira copa do mundo feminina, meus primos mais velhos não deixaram, já que para eles aquilo não era futebol. Pedi pra minha mãe comprar uma televisão pra mim e instalar no meu quarto, foi aí que eu descobri Marta e Formiga.

No dia que entrevistei Karol Silva, centroavante do Clube do Remo, descobri que o time ainda não está treinando e tem calendário definido na série A2 do campeonato brasileiro, em abril. Assim como fiz no Paysandu, queria acompanhar um treino das meninas do Remo, mas isso não foi possível.
Nos encontramos na sede social do Clube e, como não havia nenhuma sala disponível para conversamos em um lugar mais silencioso, fomos para a quadra que estava fechada. Ela adiantou que a entrevista ia ser curta, já que era muito tímida, mas foi o suficiente para perceber que estava ali por um sonho e por amor ao futebol.
Aos 31 anos, jogadora desde os 11, Karol conta que também sempre foi apaixonada por futebol e que seu pai a incentivava como jogadora. Depois de um tempo, a mãe da atleta também começou a apoiá-la e está no Remo há 6 anos, também sem um contrato assinado.

Para ela, ser mulher e jogar futebol ainda é complicado: “Acho que ser mulher no futebol hoje em dia ainda é meio complicado, porque a gente passa por muitas coisas. Tipo, eu mesma já passei, um jogo que eu tive no Pinheirense. Mas a gente continua na luta e eu tenho certeza que em um dia o futebol feminino vai ser muito valorizado”, disse.
Rotina entre o gramado e a venda de lanches
Perguntada sobre o que já ouviu dentro e fora de campo, Karol lembra que também já ouviu que lugar de mulher é “lavando roupa”, além das críticas ao seu peso, sendo chamada de “Gorda”.
Sobre a estrutura do clube, a jogadora resumiu em uma fase: “A gente tem sim uma estrutura, mas não é totalmente adequada quanto deveria ser”, concluiu.
Quando desliguei a câmera, ela revelou que tem uma barraca de lanches no distrito de Outeiro, em Belém, onde é vendedora para também completar a renda, já que passa por alguns problemas financeiros, mesmo pronta para iniciar a campanha no campeonato brasileiro A2.
Conversamos por mais alguns minutos até ela me revelar que um dos seus maiores sonhos é ver um estádio lotado para um jogo das meninas, como lotam o Mangueirão para ver o jogo dos homens. Aí, entra um outro problema, entre tantos: a falta de divulgação.
O Clube do Remo não tem uma página nas redes sociais exclusiva para notícias do futebol feminino, não há divulgação de datas e calendário dos jogos, informações sobre ingressos ou outros materiais que seriam fundamentais para que o futebol feminino fosse, no mínimo, comentado. Muitas vezes, os jogos das meninas são divulgados horas antes do início das partidas, prejudicando o acesso do público.
Em 2027, o Brasil receberá a copa do mundo feminina e o Pará tem chances de ser uma das cidades sede. Karol espera, assim como todas suas companheiras de time, que isso colabore para a valorização da modalidade, principalmente no estado.
Veja o vídeo de Karol Silva:
R$ 6 milhões para homens, R$ 600 mil para mulheres
Durante o treino do Paysandu, a equipe técnica também estava presente. A treinadora Aline Costa, aceitou conversar e falou um pouco mais sobre a realidade do futebol feminino no Pará, algo que ela já acompanha há mais de 20 anos.
Aline começou como treinadora de meninas no futsal e logo depois partiu para os gramados. Atualmente, ela possui 5 títulos estaduais, um título nacional, um vice-campeonato e dois acessos e enfatiza que treina todas as categorias femininas, sub-15, sub-17, sub-20 e adulta.
“É um trabalho muito bom que a gente tá fazendo agora nas categorias de base. Quer dizer que agora não é só o profissional, como era antigamente, a gente só tinha uma categoria, que era o adulto”, relembra com um sorriso no rosto ao falar da evolução da modalidade feminina.

Para Aline, o futebol feminino teve grandes avanços e recebeu mais investimentos do Paysandu no último ano, em 2024, disponibilizando alojamento, remuneração, estrutura física e material de treinos e jogos. Esse investimento ajuda a trazer resultados dentro e fora do campo, já que muitas meninas se sentem acolhidas pela equipe do clube.
Porém, algumas diferenças no cenário nacional mostram que há muito ainda a evoluir, principalmente no sentido financeiro. Aline lembra que no início de fevereiro, aSupercopa do Brasil foi disputada entre Flamengo e Botafogo, no estádio do Mangueirão, em Belém, onde o rubro-negro saiu como vencedor e recebeu cerca de R$ 6 milhões de reais somente pela participação no jogo. Já o valor do prêmio para o time campeão da Supercopa Feminina foi de R$ 600 mil, notavelmente uma grande diferença.
No fim do treino, uma das atletas me abraçou e confessou que achou estranho uma repórter acompanhar o treino antes do início do campeonato e que eu era a primeira a ir lá e conversar com elas, ouvi-las, acompanhar um treino.
O machismo no futebol ainda está muito longe de acabar, mas eu acredito que quanto mais falarmos sobre isso e questionarmos clubes e instituições o cenário pode mudar. A atenção tem avançado, mas o caminho ainda é muito longo.

Espero que, um dia, eu esteja trabalhando em uma Copa do Mundo feminina, vendo outras Glazielles, Karols e Alines ganhando espaço e, claro, honrando o que minha avó deixou comigo e ainda compartilho com minhas tias e minha mãe: o amor pelo futebol com igualdade e respeito.
Veja o vídeo com Aline Costa:
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