“Deixa de ser boçal e me respeita, que eu não sou tuas negas!”. A frase, com quase toda a certeza, já deve ter sido ouvida pelo leitor no dia a dia e esconde o que os ativistas chamam de racismo estrutural. Ainda que o falante, no exemplo, possa ter dito isso apenas por irritação e sem a intenção de ofender, para quem é preto, soa como uma agressão. O termo “boçal” faz referência aos escravizados que não sabiam falar a língua portuguesa e poderia facilmente ser substituído pelas expressões “grosseiro” e “ignorante”. Já a expressão “não sou tuas negas” também remete ao tempo da escravidão, quando as mulheres negras eram consideradas propriedades dos seus senhores, usadas para satisfazer seus desejos sexuais. Nesse caso, não há alternativa para substituir uma fala tão machista e racista.
Todos esses ensinamentos fazem parte do Dicionário de Expressões (Anti) Racistas e Como Eliminar as Agressões do Cotidiano. O material foi elaborado pela Defensoria Pública da Bahia e Esdep Editorial e serve como uma luva para ser usado também no Pará, onde segundo o censo do IBGE de 2010, 76,7% da população se autodeclarou preta. A obra, disponível na internet, reúne uma série de palavras e expressões faladas no cotidiano brasileiro e que ajudam a perpetuar o racismo no país. Por outro lado, de forma didática, o trabalho oferece opções ao falante, para que ele possa evoluir a comunicação sem cometer esse tipo de deslize.
“São expressões que muitas vezes usamos sem saber que são racistas. A gente precisa ter esse conhecimento. Muitas vezes, termos como ‘mulata’, ‘cabelo ruim’, são mais fáceis de identificar o quanto são racistas, mas outras não”, destaca a defensora pública Lívia Almeida, uma das articuladoras do dicionário. “O segundo passo é aceitar que o racismo não é um comportamento individual. São palavras e comportamentos que magoam, ofendem, por mais que você diga que não quis ofender”, cita.
Lívia pontua que o movimento negro classifica as expressões racistas como inaceitáveis. “Quando alguém tem uma fala sobre isso, essa pessoa é cobrada, mas ainda falta muita evolução da sociedade”, continua. “É preciso ter empatia, muita gente diz que é besteira, que se quer problematizar tudo. As pessoas querem justificar como se fosse mimimi”, cita.
O dicionário foi lançado no fim de 2021, tendo origem em uma série de cards educativos sobre o tema e que fizeram sucesso nas redes sociais. “É você perceber e respeitar o próximo. Temos um grupo no poder que autoriza esse tipo de comportamento”, critica Lívia, que lembra que a luta antirracista não se restringe às expressões populares. “Hoje para adotar uma criança, você pode escolher a raça. Qual a justificativa para isso que não seja uma conduta racista?”, questiona. “É por isso que a Defensoria Pública (Rio de Janeiro e Bahia) entrou com uma petição no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para excluir preferência de adotantes quanto à raça, cor e etnia de crianças”, informa. “São reproduções de atitudes e comportamentos estruturais, institucionais, que reproduzem o racismo”, alerta. “São as palavras que você usa, sua opção em não adotar uma criança preta, o nome escolhido para um prédio”, exemplifica.
DIVISÃO
A coordenadora antirracista da Prefeitura de Belém, Elza Fátima Rodrigues, ativista também ligada ao Centro de Estudo e Defesa do Negro no Pará (Cedenpa), opina que o racismo no Brasil chega a ser mais cruel que nos Estados Unidos, onde há todo um histórico de segregação. “Aqui essa história de que as raças convivem de maneira harmônica cai por terra”, diz. “Expressões como ‘moreno cor de jambo’ dividem a nossa identidade. É como se estivesse fazendo de conta que o racismo não existe”, pontua.
Elza lembra até mesmo um dos apelidos de Belém para mostrar o racismo. “Cidade Morena. De onde vem essa concepção do moreno para falsear um racismo de marca e origem? Nem gosto de citar essas expressões para não divulgá-las”, admite a coordenadora. “Nossa identidade está na nossa pele. Essa nova geração está empoderada para ocupar seus espaços”, afirma sobre o ativismo dos jovens negros.
Nessa luta antirracista, nem São Benedito escapa. O santo preto da Igreja Católica também é alvo de uma expressão racista que muitos falam quando as coisas começam a dar errado: “mas será o Benedito? Como se as coisas estivessem dando errado por culpa dele. “Falam que o politicamente correto é chato, mas é na brincadeira que o racismo se expressa e magoa as pessoas”, reitera Elza. “Não se brinca com a ancestralidade de ninguém. Você que ser antirracista? Pergunte pro preto ou pro indígena como ele se sente”, recomenda, para em seguida comentar sobre o dicionário. “São importantes iniciativas de como evoluir. É preciso combater. Isso nos ajuda a refletir sobre essas expressões espinhosas”.
MUDE SUA MANEIRA DE FALAR!
Confira a seguir algumas expressões racistas listadas no Dicionário de Expressões (Anti) Racistas da Defensoria Pública da Bahia e de que maneira elas podem ser substituídas ou quando o melhor mesmo é abolir do vocabulário.
- A COISA TÁ PRETA!
A fala racista remete a associação entre preto e uma situação desconfortável, desagradável, perigosa, negativa.
Alternativa: A situação está complicada/difícil.
- A DAR COM PAU!
Expressão originada nos navios negreiros. Alguns capturados preferiam morrer a serem escravizados e faziam greve de fome, na travessia entre a África e o Brasil. Para obrigá-los a se alimentar, um “pau de comer” foi criado para jogar angu, sopa e outras comidas pela boca.
Alternativa: Bastante/muito.
- CABELO DURO/BOMBRIL/CABELO RUIM!
Expressões utilizadas para se referir pejorativamente ao cabelo crespo, característico dos negros.
Alternativa: Cabelos crespos ou cacheados.
- COR DE PELE
Termo que designa cor de lápis ou giz de cera bege/rosado, associado à pele de pessoas brancas, e que desconsidera a pluralidade de tons de pele das pessoas, ainda mais em um país como o Brasil, onde a maioria da população se considera preta ou parda.
Alternativa: Tom/cor bege ou rosa claro.
- DA COR DO PECADO
“Elogio” proferido por pessoas brancas, mas que carrega a hipersexualização dos corpos negros, estigmatizados pelo período colonial, quando os senhores violentavam sexualmente mulheres negras e encaravam como um momento de diversão.
Alternativa: Não hipersexualizar corpos negros.
- DENEGRIR
Possui na raiz o significado de “tornar negro”. Utilizado como sinônimo de difamar ou caluniar, reforça, mais uma vez o ser negro como negativo, ofensivo.
Alternativa: Difamar/caluniar.
- DOMÉSTICA
A palavra deriva do termo domesticado, remetendo a algo que se tornou amansado, dominado. Carrega consigo a trajetória de mulheres negras escravizadas, que eram domesticadas através de torturas para trabalhar nos casarões.
Alternativa: Funcionária, auxiliar do lar, faxineira.
- ESCRAVO
A palavra sugere que seja uma característica da pessoa, sendo que foi algo imposto ao povo africano.
Alternativa: Escravizado.
- ÍNDIO
Não devemos usar o termo “índio” devido à ideia caricata que foi criada de “selvageria” pelos colonizadores, mas também por ignorar a pluralidade dos povos indígenas, suas nações, traços culturais, costumes e crenças.
Alternativa: Indígena/povos indígenas.
- INVEJA BRANCA
A ideia do branco como algo positivo está impregnada na expressão. Reforça a associação entre preto e comportamentos negativos.
Alternativa: Admiro o que você fez e gostaria de fazer igual.
- MEIA TIGELA
Os negros que trabalhavam à força nas minas de ouro nem sempre conseguiam atingir suas metas. A punição, quando isso ocorria, era receber metade da tigela de comida, ganhando o apelido de “meia tigela”, hoje considerado algo medíocre, sem valor.
Alternativa: Medíocre/Malfeito.
- MORENO
Chamar uma pessoa de negra ainda vem carregado de estigmas negativos. O termo moreno vem para “amenizar”. Porém, o movimento negro a cada dia reforça a importância e a beleza de se reconhecer negro, se reconectar com sua ancestralidade e origem.
Alternativa: Pode chamar uma pessoa de negro (a).
- OVELHA NEGRA
Carrega o simbolismo de associar o negro a algo ruim, ilegal.
Alternativa: Pessoa ruim.
Fonte: Dicionário de Expressões (Anti) Racistas. Disponível em - https://url.gratis/ZMHkK9
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