A escravidão no Brasil foi bem mais do que um sistema econômico: ela moldou condutas, definiu desigualdades sociais, fez da raça e da cor marcadores de opressão e de diferença fundamentais, ordenou etiquetas de mando e obediência, e criou uma sociedade marcada por uma hierarquia social muito estrita. A escravidão nos legou uma sociedade autoritária e iníqua, o que nos legou uma série de problemas à nossa agenda republicana, em prejuízo ao aperfeiçoamento democrático e sua promessa de igualdade. (SCHWARCS, 2019).

Nesta perspectiva, ocorreu uma certa naturalização da condição de subalternização e da desigualdade de direitos das pessoas negras, notadamente da mulher. Em acréscimo, vale ressaltar que no início do movimento feminista, enquanto as mulheres brancas lutavam por direito ao voto, ao trabalho e à propriedade, as mulheres negras sequer eram vistas como seres humanos e incluídas nas reivindicações. Precisamente por essa razão, foi necessário apontar os limites do feminismo hegemônico, assim como denunciar a ideia da mulher branca  como sujeito universal e como referência de luta. A este respeito Carneiro (201, p.121), considera que em diferentes momentos, as mulheres negras tiveram suas temáticas específicas secundarizadas ou tratadas como subitem da questão geral da mulher, mesmo em um país como o Brasil cuja população é de maioria negra. Por essa razão não foi devidamente problematizado que  mulheres negras estão na base da pirâmide social, na qual vêm primeiro os homens brancos, mulheres brancas, homens negros e por último as mulheres negras.

As representações sociais sobre a mulher negra no Brasil
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 Não se pode levar a cabo essa reflexão sem compreender que na sociedade brasileira, a mulher negra passou por longo período de reificação vista como a mulata sexualizada ou a negra que desempenhava os trabalhos pesados não só na casa grande, mas também nas lavouras. Ocorre que essa realidade não é simplesmente um fato histórico, ou uma reminiscência do passado. Trata-se de uma mentalidade que permanece presente no imaginário social. Isto fica particularmente claro por meio de casos como o Madalena Giordano, que viveu em situação análoga á escravidão durante quadro décadas, e não se trata de um caso isolado. 

A construção social sobre a mulher negra fica evidente quando se constata que, de acordo com o Censo Superior de Educação com dados de 2016, menos de 3% das docentes dos cursos de pós-graduação do Brasil, incluindo instituições públicas e privadas, são negras. Esse percentual, ínfimo, engloba as mulheres que se autodeclararam pretas e pardas. Esses dados se coadunam com o que a teórica negra estadunidense, Patricia Hill Collins chama de imagem de controle em relação às representações sociais sobre a mulher negra.   

Professora doutora Sandra Suely Moreira Lurine Guimarães: "a mulher negra passou por longo período de reificação vista como a mulata sexualizada ou a negra que desempenhava os trabalhos pesados não só na casa grande, mas também nas lavouras. Ocorre que essa realidade não é simplesmente um fato histórico, ou uma reminiscência do passado. Trata-se de uma mentalidade que permanece presente no imaginário social".
📷 Professora doutora Sandra Suely Moreira Lurine Guimarães: "a mulher negra passou por longo período de reificação vista como a mulata sexualizada ou a negra que desempenhava os trabalhos pesados não só na casa grande, mas também nas lavouras. Ocorre que essa realidade não é simplesmente um fato histórico, ou uma reminiscência do passado. Trata-se de uma mentalidade que permanece presente no imaginário social". |(crédito: Divulgação)

  O processo contínuo e sistemático de discriminação e preconceito de todas as ordens concorre para a construção social de certos estereótipos da mulher negra como a mulata disponível ao sexo fácil, inclusive amplamente difundida no exterior, ou a da negra empregada doméstica. Dificilmente há uma assimilação à imagem de uma intelectual, por exemplo. O corpo violado, o ventre gerador para fins econômicos com o lucro da comercialização dos seus filhos, o corpo da ama-de-leite que não podia alimentar seus próprios filhos porque era obrigada a amamentar os filhos da sinhá é, atualmente, o corpo que suporta o pesado fardo do interminável do trabalho subalterno.       

Sandra Suely Moreira Lurine Guimarães é mulher negra e professora. Ela graduada em Direito, Psicologia e Direito. É  também doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA) . Atualmente é professora da Faculdade Fibra, membra do grupo de pesquisa Filosofia política: investigação em política, ética e direito (CNPq).

REFERÊNCIAS

CARNEIRO, Sueli. Racismo, Sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011

COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política de empoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019

HOOKS, Bell. Teoria Feminista negra: da margem ao centro. São Paulo: Perspectiva, 2019

RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das letras, 2019.

SCHWARCS, Lilia. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.                                                                                                                 

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