O ano de 2020 trouxe progressos consideráveis em termos de proteção legal para lésbicas, gays e bissexuais, mas a relação entre pessoas do mesmo sexo ainda é considerada um crime em 69 países, de acordo com o principal relatório mundial sobre este tema, divulgado nesta terça-feira (15).
O documento “Homofobia de Estado”, produzido pela ILGA (Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexuais), traz dados sobre as legislações que afetam indivíduos com base em sua orientação sexual e também apresenta um panorama dos avanços e retrocessos em 193 países-membros da ONU (Organização das Nações Unidas).
Em sua versão anterior, de 2019, o relatório apontava 70 países que criminalizavam relações entre pessoas do mesmo sexo. Neste ano, o número diminuiu depois que o Gabão recuou de um projeto de lei que previa multa e seis meses de prisão para quem praticasse algum tipo de ato homossexual.
Dos 69 países da lista, 67 têm leis explícitas contra a prática e outros dois, Iraque e Egito, fazem uso indireto de outras leis para perseguir e condenar pessoas por esses atos. Nos últimos cinco anos, segundo o documento, ao menos 34 países aplicaram ativamente as leis que punem a relação entre indivíduos do mesmo sexo.
“Onde quer que tais disposições estejam nos planos, as pessoas podem ser denunciadas e presas a qualquer momento, mesmo que apenas sob suspeita de terem feito sexo com alguém do mesmo sexo. Os tribunais os processam e os sentenciam à prisão, ao açoitamento público ou até à morte”, afirma o advogado argentino Lucas Ramón Mendos, principal autor do relatório.
Uma conquista importante foi a revogação da pena de morte para homossexuais no Sudão, embora esse tipo de punição ainda vigore em seis países (Árabia Saudita, Brunei, Iêmen, Irã, Mauritânia e Nigéria). Outras cinco nações (Afeganistão, Emirados Árabes Unidos, Paquistão, Qatar e Somália) também podem impôr pena capital a pessoas LGBT, mas suas leis não são tão explícitas nesse sentido.
O documento aponta ainda que 42 países possuem barreiras legais contra a liberdade de expressão em questões relacionadas à diversidade sexual e de gênero.
O Brasil entra nessa lista devido ao que o relatório chama de “proliferação de legislações locais proibindo a disseminação da chamada ‘ideologia de gênero'” – expressão não reconhecida no mundo acadêmico e normalmente usada por grupos conservadores e religiosos.
O Brasil também aparece na lista de 57 países que possuem mecanismos legais de proteção à comunidade LGBT graças à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em junho de 2019, que enquadrou a homofobia e a transfobia na lei dos crimes de racismo até que o Congresso Nacional aprove uma legislação específica sobre o tema.
Ser homossexual no Brasil deixou de ser crime em 1831. Antes disso, ainda vigia a lei colonial segundo a qual quem cometesse “o pecado da sodomia” deveria ser “queimado, e feito por fogo em pó, para que nunca de seu corpo e sepultura possa haver memória”.
A pandemia de coronavírus, que já causou mais de 1,5 milhão de mortes em todo o mundo, também afetou a capacidade de organização dos grupos de defesa da comunidade LGBT.
Segundo o relatório, “resiliência e criatividade” permitiram que muitos ativistas permanecessem conectados na luta por direitos, já que as medidas de restrição cancelaram eventos, paradas e impossibilitaram reuniões presenciais.
“Alguns governos se aproveitaram dessas circunstâncias e intensificaram seus esforços para oprimir, perseguir e nos discriminar violentamente. Em muitos lugares onde as leis já eram uma causa de desigualdade, as coisas só pioraram”, diz Julia Ehrt, diretora de programas da ILGA.
Embora não tenha ocorrido a tempo de constar na versão atual do relatório, uma decisão do Parlamento da Hungria de emendar a Constituição do país nesta terça se encaixa no tipo de discriminação ao qual o documento se refere.
A legislação húngara agora define “família” como “baseada no casamento e na relação entre pais e filhos”. O novo texto também afirma que “a mãe é uma mulher, o pai um homem” e determina que os filhos sejam criados com um espírito conservador.
Na prática, a Constituição do país proíbe definitivamente a adoção de crianças por casais formados por dois homens ou duas mulheres. Segundo o documento da ILGA, há apenas 28 países que permitem a adoção por casais homossexuais.
Outros exemplos de ações discriminatórias ocorridas em meio à pandemia são a proliferação de “zonas livres de LGBTs” na Polônia, os incentivos às “terapias de conversão” – a chamada “cura gay” – na Indonésia e a reversão de duas leis estaduais no estado americano da Flórida que proibiam esse tipo de “tratamento”, geralmente associado ao conservadorismo religioso.
A “cura gay” foi um serviço legalmente fornecido no Brasil de setembro de 2017 a abril de 2019 até que a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), proibiu a prática por meio de liminar que atendeu a um pedido do Conselho Federal de Psicologia, com base em uma resolução sobre o tema datada de 1999.
Em janeiro deste ano, a ministra suspendeu a tramitação da ação popular movida pelos psicólogos cristãos e, quatro meses depois, os demais ministros do Supremo “seguiram o entendimento já traçado e encerraram definitivamente as tentativas judiciais de revogar a proibição”, de acordo com o balanço da ILGA.
Na lista de avanços em conquistas de direitos para pessoas LGBT, o relatório destaca o fato de a Alemanha ter banido as “terapias de conversão” em nível nacional enquanto países como Austrália, Canadá, Estados Unidos e México seguiram o mesmo exemplo em níveis regionais.
O relatório aponta ainda um salto positivo em relação ao número de países que possUem leis específicas para proteger pessoas LGBT em seus locais de trabalho – há 20 anos, eram 15 e, nesta atualização, são 81. Entra nessa lista, por exemplo, a decisão da Suprema Corte dos EUA que proíbe demissões de funcionários baseadas em orientação sexual e identidade de gênero.
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