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Revisão arqueológica apaga mulheres na pré-história

Análise de pinturas em cavernas e de esqueletos antigos não confirma divisão patriarcal de sociedades ancestrais

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Imagem ilustrativa da notícia Revisão arqueológica apaga mulheres na pré-história camera Espécie humana na remota ilha indonésia de Flores. A fêmea “hobbit” tem 18 mil anos de idade e parece ter vivido numa época em que o homem moderno estava colonizando o resto do mundo. | Reprodução/ Twitter

Quem foi criança a partir dos anos 1980 provavelmente se lembra do desenho "Os Flintstones". A história se passava em uma cidade da pré-história (Bedrock), onde vivia a família que dá nome ao desenho: Fred Flintstone, o personagem principal, era o "provedor", que trabalhava e obtinha a caça, enquanto sua mulher, Wilma, ocupava-se das tarefas domésticas e do cuidado dos filhos, Bambam e Pedrita.

A animação perpetuava uma visão altamente disseminada em livros de história sobre das sociedades pré-históricas caçadoras-coletoras: o homem como o caçador e guerreiro e a mulher como cuidadora, eventualmente produzindo roupas e artefatos de peles e de outros produtos de origem animal.

Mas e se essa visão fosse, na verdade, construída com base em um viés das sociedades modernas conservadoras, com essa divisão de papéis de gênero refletindo os costumes e crenças dos próprios especialistas que estudam esses povos, sem de fato ter evidências para isso?

É isso que propõe a historiadora e pesquisadora do CNRS (órgão de apoio à ciência francês) Marylène Patou-Mathis, autora do livro "O Homem Pré-Histórico Também é Mulher: uma História da Invisibilidade das Mulheres".

Com base em dados arqueológicos, incluindo artefatos, pinturas rupestres e esqueletos de mortuários coletivos que datam de mais 25 mil anos antes de Cristo, período que compreende a chamada pré-história (embora a autora refute a ideia de uma pré-história comum, mas sim a existência de várias sociedades pré-históricas com culturas e origens distintas), Patou-Mathis questiona a visão ultrapassada de alguns cientistas sobre os povos antigos, eles próprios influenciados pela visão patriarcal das sociedades ocidentais, argumentando que não há evidências que sustentem essa divisão.

"A observação a partir de povos caçadores-coletores no início do século 20 serviu de base para classificar as sociedades pré-modernas como patriarcais. O que eu estou apontando é que nos mais de 40 mil anos de evolução do homem moderno na Europa é pouco provável que só existiu essa forma de organização", explica a autora, em entrevista à Folha de S.Paulo no mês passado.

Um dos exemplos mais eloquentes no livro é a própria atribuição ao corpo feminino de frágil enquanto o homem seria forte e robusto. "Meus estudos sobre os neandertais do período Paleolítico [até 8.000 a.C.] francês mostram que as mulheres eram tão robustas quanto os homens, então por que elas não poderiam também caçar e lutar?", reflete.

A isso, Patou-Mathis junta evidências de outras sociedades com mulheres desempenhando o papel de guerreiras, como nos citas, da Sibéria, e nos povos vikings de países escandinavos.

A análise de diversos ossos pré-históricos indica patologias associadas a movimentos repetitivos, como arremessar uma lança, e de utilização de objetos cortantes (feitos a partir de pedra lascada) para rasgar o couro dos animais. Em muitos dos esqueletos de humanos antigos, porém, não é possível fazer a distinção do gênero -isso até o advento da extração de DNA de ossos. Foi assim, inclusive, que se descobriu que um famoso guerreiro viking enterrado era, na verdade, uma mulher.

A historiadora Marylène Patou-Mathis, autora do livro 'O Homem Pré-histórico Também é Mulher', sobre a invisibilidade das mulheres na arquelogia e antropologia Arquivo pessoal A historiadora Marylène Patou-Mathis, autora do livro "O homem pré-histórico também é mulher", sobre a invisibilidade das mulheres na arquelogia e antropologia ** "Só temos como saber o gênero de esqueletos em cerca de 40% dos exemplares, então a interpretação de muitos especialistas dos séculos 19 e 20 era baseada na própria sociedade, comparando os ossos com aqueles de homens e mulheres da burguesia europeia. Essa ideia, do ponto de vista científico, não tem nenhum valor para mim, eu não consigo entender como cientista essa interpretação sem provas", explica.

Da mesma maneira, a produção de pinturas rupestres e de objetos que podem ser considerados como culturais -estatuetas, bustos, representações artísticas- foi tradicionalmente atribuída aos homens.

Patou-Mathis também enxerga esse viés ideológico como influência para as interpretações científicas das pinturas rupestres, sem nenhuma evidência. "Não estou dizendo que homens não pintaram os desenhos de Lascaux, estou simplesmente dizendo que não há nenhuma prova de que foram só os homens. Não há evidências para sustentar essa visão a não ser um preconceito ideológico dos pesquisadores que as descreveram no passado", diz.

O "apagamento" das mulheres na pré-história acaba sendo semelhante ao que houve em outras áreas de estudo, como filosofia, ciências humanas e da terra, e até mesmo na produção artística e musical.

"Isso não ocorreu só com as mulheres, também foi semelhante com as pessoas negras. A ciência e o conhecimento produzidos durante mais de 200 anos tinham como visão única e exclusiva a do homem branco. Por isso acredito que muitas obras e artigos foram influenciados pelo chamado 'male gaze' [expressão usada para o olhar masculino nas obras e produções culturais]", afirma.

Por serem áreas dominadas amplamente por homens, os estudos de arqueologia e antropologia, assim como a paleontologia (estudo dos fósseis), acabaram influenciados por essa visão masculina, segundo a paleontóloga e professora da Universidade Federal do ABC, Fabiana Rodrigues Costa Nunes.

"Na área de paleontologia de vertebrados, 6 em cada 10 pesquisadores são homens. Isso traz um viés que se reflete nas mais diversas áreas do conhecimento, que acabam por reproduzir essa mesma estrutura", afirma ela, com base em dados levantados por um coletivo feminino de mulheres da área.

"Também existia um exemplo interessante na paleontologia e na biologia evolutiva de diferença entre os sexos, com as fêmeas sendo vistas como coadjuvantes, como proposto no conceito de seleção sexual de Charles Darwin. Ele atribuía um protagonismo quase absoluto aos machos na competição entre eles e escolha das fêmeas, desconsiderando qualquer papel que pudesse ser atribuído a elas", afirma.

Apesar de não ser nova, a ideia de incluir olhares diversos nas mais variadas áreas da ciência ainda tem um longo caminho pela frente. Questionada sobre a recepção de seu livro pelos pares, Patou-Mathis diz que em geral foi bem recebido, mas alguns historiadores resistem a acabar com a ideia de uma sociedade pré-moderna não patriarcal ou matrilineal. "Isso, para mim, é ideologia pura, não é ciência", afirma.

O HOMEM PRÉ-HISTÓRICO TAMBÉM É MULHER: UMA HISTÓRIA DA INVISIBILIDADE DAS MULHERES

Preço R$ 89,90Autor Marylène Patou-Mathis

Editora Rosa dos Tempos

Tradução Julia da Rosa Simões

Págs. 292Ano 2022

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