Exilada na Alemanha desde setembro de 2020, a escritora belarussa Svetlana Aleksiévitch, vencedora do Nobel de Literatura em 2015, fala com um misto de melancolia e indignação sobre a Guerra da Ucrânia e o crescente autoritarismo na região. Às vésperas de Vladimir Putin se encaminhar para a reeleição, ela considera que o Ocidente não faz o bastante para ajudar Kiev contra as tropas do presidente russo, a quem chama de "Hitler com novas tecnologias".
No apartamento onde mora, em Berlim, Svetlana, 75, disse à Folha que não tem esperanças de voltar tão cedo a Minsk, capital da Belarus, onde foi criada filha de pai belarusso e mãe ucraniana, nasceu na Ucrânia soviética. Ela se exilou para escapar da repressão do ditador Alexander Lukachenko, no poder desde 1994. À época, a autora foi uma das líderes da oposição na sociedade civil que acusava o líder de fraudar as eleições para se perpetuar.
A autora coleciona uma extensa obra de não ficção que documenta as experiências e emoções das pessoas comuns durante o ápice, a crise e o colapso da União Soviética (1922-1991). Em 2015, levou o Nobel "pela sua escrita polifônica, um monumento ao sofrimento e à coragem no nosso tempo", de acordo com a Academia Sueca, que concede a premiação.
A mesa da sua sala está repleta de manuscritos para um novo livro. Arrependida de ter clamado o fim do homem soviético, Aleksiévitch agora documenta o fracasso do projeto democrático desde a reabertura da URSS ao Ocidente. A seguir, a entrevista.
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Pergunta - Estamos às vésperas da reeleição de Vladimir Putin. Como a sra. enxerga este momento? A Guerra na Ucrânia pode ser determinante para o futuro político do presidente russo?
Svetlana Aleksiévitch - Há diferentes versões do que está acontecendo, e não sei ao certo. Só posso falar por mim mesma sobre o que desejo. Eu desejo que o mundo faça Vladimir Putin parar com essa situação. Caso contrário, se tornará muito perigoso.
P. - O Ocidente tem feito o possível em ajuda financeira e militar para a Ucrânia?
S. V - Claro que não. Vejo que o mundo ainda não compreendeu totalmente o perigo, e eles não percebem que Putin é um novo Hitler, mas equipado com novas tecnologias, e que isso pode ser ainda mais terrível do que antes. Por um lado, o mundo fez muito. Por outro, não fez o suficiente, especialmente em fornecer à Ucrânia mais do que armas.
P. - O presidente Lula foi criticado por Volodimir Zelenski por não reconhecer explicitamente a responsabilidade de Putin pelo início da guerra. Como a sra. vê essa posição?
S. V - Você só pode considerar isso de uma perspectiva muito crítica. Apenas reafirma o que acabei de dizer, que o mundo não entendeu completamente quem é Putin e quão perigoso ele é. Este medo de perder o petróleo leva a uma grande cautela por parte do Ocidente, e é por isso que muito tempo foi perdido. Enquanto isso, Putin se torna ainda mais poderoso. Os políticos são míopes porque não entendem quem é Putin. Porque ele vai se tornar um Hitler com novas tecnologias, alguém com armas nucleares também no espaço. Por isso Putin tem todos os motivos para chantagear.
P. - Após os protestos reprimidos pelo ditador Lukachenko em 2020 e 2021, quais são as chances de um movimento democrático ter sucesso na Belarus?
S. V - Houve muito silêncio nos últimos anos porque muitas pessoas simplesmente têm muito medo, e algumas delas estão na prisão. Temos cerca de 2.000 presos políticos no país, e muitos outros com quem ninguém sabe o que aconteceu. (...) Mas não acho que as pessoas tenham esquecido o que ocorreu em 2020 e 2021. Pesquisas mostram que o número de pessoas pró-Lukachenko é igual ao de pessoas contra ele, mas a zona cinzenta é muito grande. E as pessoas simplesmente continuam vivendo suas vidas. Claro, não podemos conversar com elas e tentar convencê-las.
O que houve com [o opositor russo, Alexei] Navalni, com a sua morte, ( ) só mostra que as ditaduras na Rússia e na Belarus estão apenas se fortalecendo. Está se tornando cada vez menos viável lutar contra. E muita gente viu seu estilo de vida melhorar ao longo dos anos, portanto tem muito a perder. Compraram casas e apartamentos, têm bons empregos, viajam pelo mundo, compram roupas boas, têm boa comida. Por isso, estão dispostos até a suportar a humilhação.
P. - A sra. sempre enfatizou o desejo de voltar à sua pátria. Quando acha que isso vá ser possível?
S. V - Infelizmente, não acontecerá em breve. (...) As ditaduras ainda têm muitas reservas. Claro que sinto falta da minha casa e gostaria de ir para lá. Sou proprietária de um apartamento com vista para o rio [Svislach, que corta Minsk]. Quando criança, costumava morar em um apartamento perto do rio, então esse era o meu sonho. Uma vez que recebi o Prêmio Nobel, finalmente pude comprar este apartamento. Mas, se algum dia estarei lá novamente não sei. Lukachenko ainda ameaça me tirar isso.
P. - Seus livros mostram como a utopia soviética permeou o cotidiano e foi substituída por um sentimento de fracasso nos anos 1990. Após a utopia e o fracasso, que capítulo da história vive a região?
S. V - As pessoas falavam sobre liberdade, gritavam por liberdade nas grandes praças [durante a perestroika]. Mas ninguém entendeu que é um processo longo. Leva muito tempo. Não havia poder suficiente para manter essa liberdade, porque na verdade a perestroika foi liderada pelo [último líder soviético, Mikhail] Gorbatchov (1931-2022) e um pequeno grupo de pessoas. Mas as pessoas não estavam realmente prontas.
Estou escrevendo um livro chamado "Na Presença da Barbárie" (tradução livre). Porque aconteceu o que ninguém esperava. Esperávamos que passo a passo nos aproximaríamos da democracia, mas aconteceu o completo oposto. Agora temos a KGB [antigo serviço secreto soviético, cujo espólio se tornou a atual FSB russa] no poder, e ninguém entende o que eles realmente querem. Querem a Grande Rússia? Querem restabelecer a URSS? É uma completa loucura. (...) Fomos muito ingênuos de pensar que o comunismo estava morto. Estávamos tão errados. Agora ele está sendo restabelecido e volta para uma nova batalha.
P. - A memória dos tempos soviéticos agora prevalece como trauma ou nostalgia? As novas gerações se esqueceram dela?
S. V - No início, quando falávamos do passado soviético, parecia mais uma experiência traumática por causa de memória do gulag [campo de concentração soviético] e tudo o mais. Mas depois a nostalgia começou a prevalecer, porque talvez a vida fosse difícil, e as pessoas ansiavam pelo passado. Especialmente a geração mais antiga começou a sentir essa nostalgia, mas também os mais jovens.
Lembro-me de uma história no meu livro "O Fim do Homem Soviético" (2013). Um homem do Tadjiquistão me disse: "Meu pai vinha para a Rússia, ele estudou na Universidade do Estado de Moscou e era considerado um amigo. Agora eu moro na Rússia e trabalho em um canteiro de obras. Fui tratado mal, as pessoas mentem para mim, tentam me usar. Minha esposa está limpando banheiros. O que diríamos? Era melhor naqueles dias?". (...) O capitalismo assume uma forma muito horrível hoje na Rússia. (...) Acho que esta seja uma das razões pelas quais tantas pessoas apoiam Putin. Elas podem não ser a favor da guerra, mas simplesmente apoiam Putin.
P. - Já se noticiou que a sra. trabalhava em obras sobre outros temas. A sra. agora mencionou um novo livro. Será sua próxima publicação?
S. V - Eu tinha minhas ideias [para escrever] sobre amor e envelhecimento. Mas esses manuscritos ficaram em casa, e não tenho acesso a eles. Não sei se algum dia conseguirei pegá-los. Então, o novo livro ["Na Presença da Barbárie"] é sobre como o homem vermelho [soviético] não está morto e está aqui entre nós. É sobre as disputas, a luta, o sangue que nos cercam no nosso mundo, em nossas vidas. É sobre como encontrar o poder para lutar contra ele.
P. - O que gostaria de que acontecesse no futuro próximo?
S. V - (...) Vejo muito desespero entre as pessoas com quem falo, e falo com muitas pessoas porque estou reunindo material para meu novo livro. Todo mundo está lutando. Para quem saiu do país, é muito difícil se integrar, mas não há volta para casa. Todos esperam uma mudança, e é claro que ninguém sabe quando vai acontecer. (...) Estas ditaduras estão lutando contra a modernidade, tentando parar o tempo. Mas é claro que isso é impossível, e esta é a única esperança.
RAIO-X | SVETLANA ALEKSIÉVITCH, 75
Filha de pai belarusso e mãe ucraniana, nasceu em Stanislav (atual Ivano-Frankivsk), no oeste da Ucrânia soviética. Cresceu em Minsk, capital da Belarus. Vencedora do Nobel de Literatura de 2015, é conhecida por sua obra ligada ao cotidiano da antiga URSS e a seu legado pós-dissolução, com títulos como "Vozes de Tchernóbil" e "O Fim do Homem Soviético". Opositora do regime do ditador belarusso Alexander Lukachenko, vive exilada em Berlim desde 2020.
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