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TRADIÇÃO

Mercearias resistem ao tempo e aos grandes comércios em Belém

Em meio ao crescimento da presença de redes de supermercados, as mercearias se mantêm firmes nos bairros da capital paraense. Em alguns destes comércios, ainda dá pra comprar “a retalho”

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Imagem ilustrativa da notícia Mercearias resistem ao tempo e aos grandes comércios em Belém camera João Alaílson | Irene Almeida

Ao cruzar a porta de entrada, os inúmeros utensílios organizados em prateleiras de madeira são os resquícios de uma tradição que até hoje sobrevive em alguns bairros da capital paraense. Em meio à expansão da presença de grandes redes de supermercados pela cidade, as tradicionais tabernas ou mercearias se mantêm. Mesmo que em formatos mais modernos, em alguns destes comércios tradicionais ainda é possível encontrar meio quilo de açúcar, um quarto de charque e até uma dose de boa conversa.

A marcenaria encontrada no interior da ‘taberna’ intitulada Casa Castelinho, no Mercado do Porto do Sal, data de 1945, ano de inauguração da mercearia iniciada pelo comerciante português Carlos Dias. Passados 75 anos, a estrutura permanece no local que nunca mudou de função. Segue vendendo arroz, feijão, farinha, carvão, enlatados, mamadeiras, pentes de cabelo, sandálias de borracha, produtos de higiene, produtos de limpeza e o que mais for de necessidade da freguesia assídua.

“Aqui sempre foi mercearia. Naquele tempo (década de 40) ele vendia até mesmo peixe que chegava para ele direto do porto naquelas esteiras. Hoje não vendemos mais peixe, mas continuamos como mercearia, vendendo um pouco de tudo”, conta João Alaílson, que hoje gerencia o comércio que permanece como propriedade da família do fundador.

Depois que o seu Carlos faleceu, a mercearia passou para a filha. Mas, por causa da idade, ela já não pode mais vir. Essas prateleiras o seu Carlos dizia que encomendou de um alemão e até hoje, depois de tanto tempo, elas seguem firmes, madeira mesmo”.

Para João Alaílson, além das prateleiras em madeira, a própria forma de organização do comércio deve resistir ainda por bastante tempo. Para ele, ainda que outros formatos de comércio tenham surgido e se espalhado pela cidade, o que faz com que as tradicionais mercearias perdurem é a fidelidade dos clientes. “Têm clientes que vêm aqui sempre, quando estão precisando de alguma coisa mais rápida, uma necessidade mesmo”, considera. “Tem clientes aqui de mais de 40 anos”.

A fidelidade dos clientes também faz parte do patrimônio deixado ao advogado e comerciante Otávio Rodrigues, 35, pelo pai. Instalada em um casarão no bairro do Umarizal, a Casa Santa Quitéria também mantém até hoje a finalidade que lhe foi atribuída anos atrás. “O que eu sei é que os escritos do prédio são centenários e que sempre foi uma mercearia. Ela pertencia a outra família, o meu pai arrendou e manteve como mercearia e depois comprou em 1983. Após o falecimento do meu pai, em 2017, eu assumi e venho mantendo as mesmas características”, conta Otávio.

“Como as mercearias tradicionais, nós vendemos de tudo um pouco, itens de armarinho, alimentos não perecíveis, material de limpeza, material de higiene, papelaria, lanches e no período da tarde e noite acaba tendo essa característica mais de bar também porque vendemos um vinho, um whisky, uma cerveja”.

CONVERSAS

Otávio Rodrigues
📷 Otávio Rodrigues |Irene Almeida

Além da grande variedade de itens, Otávio atribui a presença dos clientes também às conversas que o espaço tradicional do bairro proporciona. Ele conta que os clientes da mercearia não têm como característica chegar ao local com uma lista de compras, como habitualmente as pessoas fazem nos supermercados. Normalmente elas vão em busca de uma necessidade que, em alguns casos, pode nem estar tão concentrada nos produtos vendidos, mas também na própria companhia e amizade conquistada.

“Temos clientes que eram do meu pai e que permanecem comigo. Tem alguns que já criaram uma relação de amizade, temos um grupo de WhatsApp só com esses clientes que às vezes vêm até aqui não necessariamente para comprar alguma coisa, mas porque querem conversar um pouco”, conta. “Dessa forma a tradição vai se mantendo”.

A tradição se repete na Casa Sandra, mercearia presente há 60 anos no bairro de Canudos. Assim como no caso de Otávio, a comerciante Sandra Dornelas, 54, também viveu a infância brincando entre as prateleiras da tradicional mercearia iniciada pelo pai. Após a sua partida, há três anos, a filha assumiu o comando atrás do balcão.

Sandra Dornelas
📷 Sandra Dornelas |Irene Almeida

Como viu acontecer durante a gestão de seu pai, Sandra também mantém o comércio não apenas como local de venda de gêneros alimentícios e itens de primeira necessidade, mas também como ponto de encontro entre amigos e vizinhos do bairro. “Moradores de muitos anos do bairro acabam vindo e se encontrando aqui. Eu mantive a tradição”, conta Sandra, que também salvaguarda a antiga balança de ferro usada pelo pai desde o início do negócio.

Morador do bairro, o administrador Ivaney Fernandes, 44, foi cliente do pai de Sandra e se mantém até hoje. “Já frequentava antes quando o seu Júlio ainda era vivo, me mudei do bairro, retornei e voltei também a ser cliente da mercearia”, conta. “É um local super agradável, que só frequentam amigos, então é muito tranquilo vir e bater um papo”.

No bairro da Cidade Velha, a relação de proximidade com os clientes mais assíduos também não falta. O comerciante Carlos Rodrigues, 53, deu início à mercearia Gavião Dourado ainda em 1982 e, desde então, mantém os mesmos hábitos característicos desse tipo de comércio.

Carlos Rodrigues
📷 Carlos Rodrigues |Irene Almeida

“O que as pessoas mais vêm comprar é meio quilo de açúcar, um quarto de mortadela, um litro de farinha”, conta, ao reforçar que mantém a tradição das chamadas vendas ‘a retalho’. “As necessidades variam de acordo com o dia e horário. Pela manhã as pessoas vêm em busca do ovo fresco, da farinha, do charque. Aos domingos, após o almoço, alguns clientes mais antigos vêm para tomar uma cervejinha. Estou há quase 40 anos nesse ponto, então esse contato direto com o cliente, essa relação que se cria é o que mantém vivas as mercearias”.

Ainda que a balança moderna e eletrônica esteja presente no mercado, a antiga balança de ferro é outra tradição que Carlos não abre mão. Ela está com ele desde o início do negócio e permanece funcionando com precisão, ele se orgulha em dizer. “Eu ainda uso muito ela, principalmente quando falta energia. Não tem erro, ela vai estar sempre pronta para trabalhar. Muita gente já chegou querendo colocar preço nela, mas não vendo”.

“Foi da mercearia que eu mantive e eduquei os meus filhos”

Item característico desse tipo de comércio, a balança também faz parte da memória da Casa Nossa Senhora de Nazaré, mercearia comandada pelo comerciante Mário Sérgio de Luz, 46, no bairro de São Brás. Repetindo os passos de muitas das histórias que envolvem esse tipo de comércio em Belém, Mário Sérgio conta que a mercearia também foi iniciada por seu pai e depois assumida por ele.

Mário Sérgio de Luz
📷 Mário Sérgio de Luz |Irene Almeida

“Estamos há 36 anos aqui e esse ponto sempre foi uma mercearia. Quando meu pai comprou um ponto de um comerciante português, já era mercearia”, recorda. “Eu lembro que ela já tinha o nome de Casa Nossa Senhora de Nazaré e como nós somos uma família paraense e devota de Nossa Senhora de Nazaré, mantivemos o nome”.

Foi através do trabalho em mercearia também que o comerciante Pedro Silveira, 67, garantiu o sustento da família. Há 35 anos no ramo, ele começou trabalhando com o cunhado e 10 anos depois montou a própria mercearia, instalada até hoje na Feira da Bandeira Branca,no bairro do Marco.

 Pedro Silveira
📷 Pedro Silveira |Irene Almeida

“Foi da mercearia que eu mantive e eduquei os meus filhos e é de onde sobrevivo até hoje”, conta. “Eu considero que esse atendimento cara a cara é que dá a longevidade das mercearias e, para mim, é também o meu bem-estar. Muitas pessoas gostam de vir e conversar um pouco, ver o produto de perto e levar só aquilo que ela vai precisar, seja um quarto, meio quilo ou o quilo inteiro”.

TRADIÇÃO

- A presença de pequenos comércios que possibilitam a compra de produtos ‘a retalho’, sobretudo alimentícios, data de muitos anos. Mantendo contrato com a antiga província do Pará para publicação do expediente oficial do governo a partir de meados de 1840, o antigo jornal ‘Treze de Maio’ guarda registros centenários da presença desse tipo de comércio na capital Belém.

- Na edição do dia 10 de março de 1855, disponibilizada pela hemeroteca digital da Biblioteca Nacional (BN), os registros de recebimento de rendas provinciais de diferentes impostos cobrados naquele mesmo ano apontam uma grande presença desse tipo de comércio no bairro da Campina, em Belém, com 24 registros à época. A publicação aponta que, apenas na Rua Santo Antônio, estavam concentradas 10 tabernas ou tavernas.

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