O mundo ainda vive a pandemia de Covid-19, a qual provocou mudanças na rotina de toda a população global. No Brasil, apesar da crise econômica instalada no país, o número de pessoas que contrataram planos de saúde em 2021 foi de quase 49 milhões, o maior já registrado desde janeiro de 2016, de acordo com a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Tudo para garantir proteção em meio às incertezas.
O crescimento foi de 1.508.134 usuários em um ano, uma alta de 3,18%. Ou seja, quase 25% da população do Brasil faz uso de planos de saúde e deles dependem para realizar consultas, cirurgias, procedimentos e tratamentos.
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No entanto, apesar da maior parte das operadoras ofertar contratos mais ou menos abrangentes, a cobertura dos planos era baseada em um rol que contém cerca de 3,7 mil procedimentos indicados pela ANS. Mesmo que o número pareça alto, ele não é. Muito pelo contrário.
Vários procedimentos ficam de fora desta lista, especialmente os mais recentes e alguns tratamentos para quadros mais específicos. No entanto, há anos o judiciário entendia que a cobertura dos planos de saúde deveria usar o rol da ANS de forma exemplificativa - ou seja, a lista serviria apenas como exemplo do básico a ser ofertado aos usuários, não como o máximo que poderia ser disponibilizado.
Desta forma, pacientes que receberam prescrição médica de procedimentos ou tratamentos não atendidos pelas operadoras poderiam acionar a Justiça para conseguir a garantia da cobertura. E, na grande maioria dos casos, venciam a ação movida.
Porém, na tarde da última quarta-feira (8), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu pela mudança no entendimento. Por seis votos favoráveis a três contrários, os ministros definiram que a cobertura dos planos de saúde passará a ser feita de forma taxativa - ou seja, apenas o que consta na lista da ANS é obrigatório de ser coberto, abrindo margem para que as operadoras recusem procedimentos não indicados nas 127 páginas do rol.
“Quando o plano de saúde negava um tratamento médico de forma administrativa por não ter previsão no rol da ANS, recorríamos à Justiça solicitando o tratamento de forma imediata, por via de tutela de urgência antecipada, dependendo do caso e, na maioria das vezes, conseguíamos os tratamentos com a alegação de que o rol da ANS era meramente exemplificativo - mais amplo, permitindo a entrada de novos tratamentos prescritos pelo médico assistente - devendo ser resguardado o direito à dignidade da pessoa humana, o direito à vida, dentre outros, que norteiam o ordenamento jurídico”, pontua a advogada Thais Rodrigues, especialista em Direito Médico e da Saúde.
Thais se especializou nesta área após ela mesma passar pela situação de necessitar de procedimentos não cobertos pelos planos de saúde. No fim de 2018, ela pesava 148kg e precisava realizar uma cirurgia bariátrica. Após fazer a primeira e a segunda operação deste tipo, ela perdeu cerca de 64kg e os médicos indicaram que fizesse, também, cirurgias plásticas reparadoras para resolver o problema do excesso de pele.
Ao perceber como os planos costumam se recusar a cobrir estes procedimentos, se dedicou a estudar outros casos e atuar na ajuda dos pacientes que entram com ações judiciais contra as operadoras.
RESSALVAS
Na decisão do STJ, foram elencadas ressalvas à mudança que amenizam os impactos da decisão nos usuários de planos de saúde, entre elas, nos casos em que estejam esgotadas as tentativas com os tratamentos previstos no rol e laudos médicos devidamente fundamentados, informando a eficácia do tratamento sugerido e o esgotamento das tentativas com métodos previstos no rol.
Outros pontos de ressalva para tratamentos não contemplados no rol e que devem ser disponibilizados aos usuários são de que não haja restrição da ANS quanto ao procedimento solicitado, que existam evidências científicas sobre a utilização do tratamento pretendido, que exista comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências e que tenha a recomendação de órgãos técnicos de renome nacional e também estrangeiros.
A principal tese defendida pelo relator da proposta, ministro Luis Felipe Salomão, para aprovar a taxatividade do rol da ANS seria a adequação do funcionamento do sistema de saúde suplementar, o que garantiria proteção, inclusive, para os beneficiários, os quais poderiam ser prejudicados caso os planos tivessem de "arcar indiscriminadamente" com ordens judiciais para a cobertura de procedimentos fora da lista da Agência Nacional. Os custos destes procedimentos representariam, então, a necessidade frequente de reajustar os valores cobrados dos usuários em seus contratos.
IMPACTOS NEGATIVOS
“Entretanto, alguns impactos negativos merecem ser levados em consideração, pois o fato consumado, é que a operadora de saúde não irá custear o que não estiver previsto no rol da ANS imediatamente, levando o paciente a buscar suplemento judicial ou amparo direto no Sistema Único de Saúde, tendo em vista que a saúde é um direito universal, podendo fazer com que o Sistema Público de Saúde entre em um verdadeiro colapso, ainda maior”, destaca Thais.
Além da questão da sobrecarga na rede pública, ela prevê que o judiciário passará a receber ainda mais ações para definir o que é (ou não) necessário para que um tratamento seja coberto pelo plano de saúde, podendo atrasar ainda mais a busca pela cura.
"Infelizmente, é um tempo que o paciente não dispõe para aguardar. Além do que, com um rol considerado taxativo, os pacientes terão dificuldade em alcançar liminares ou, ainda, lograr êxito nos processos que visam o acesso a medicamentos e tratamentos”, conta a advogada.
MOBILIZAÇÃO NACIONAL
Entidades, associações, institutos e diversas celebridades passaram a apoiar a tag #RolTaxativoMata nas redes sociais às vésperas da votação, que se tornou um dos assuntos mais comentados no Twitter.
Protestos ocorreram em frente a tribunais a fim de chamar a atenção da sociedade para o tema, que impacta a vida de pacientes que já fazem tratamentos e poderão ter os mesmos suspensos. Apesar do apelo popular, o STJ decidiu a favor das operadoras.
RECUSA DE PLANOS
“Imagine um caso de uma criança com um transtorno do desenvolvimento, a qual o médico especialista que lhe assiste receitou uma determinada terapia. Ou ainda o caso de uma pessoa com uma doença rara que exige uma medicação específica. Se em ambos os casos não houver previsão na lista da ANS, taxativa segundo o STJ, o plano não é obrigado a cobrir os gastos, mesmo que o tratamento ou medicamento seja vital ao consumidor. A tese fixada prevê algumas exceções, mas dificultam muito a vida do usuário”, afirma Cassio Bitar, defensor público do Estado do Pará.
É o caso de Vanessa Ziotti, de 33 anos. Em entrevista ao Portal Metrópoles, ela revelou que, minutos após o estabelecimento do rol taxativo, soube que foi alvo de petição para derrubar uma liminar que garantia medicamentos aos seus três filhos com transtorno do espectro autista (TEA) O custo da manutenção dos remédios é de R$30 mil mensais.
Não há uma estimativa oficial dos procedimentos que passarão a ser negados pelos planos de saúde, mas entidades de apoio a pessoas com deficiências e portadores de distúrbios de neurodesenvolvimento, como o autismo, afirmam que a medida impactou diretamente estas pessoas e representa uma espécie de “sentença de morte”.
“Essa decisão vai matar pessoas. Vai deixar pessoas com deficiências, doenças graves e doenças raras desatendidas. E se bobear, os planos vão cobrar ressarcimento das pessoas de tudo que já pagaram até agora. É uma tragédia gigante que se abateu neste país hoje e espero que todo mundo esteja bem ciente disso”, desabafou para jornalistas a ativista da causa inclusiva Andrea Werner, fundadora do Instituto Lagarta Vira Pupa, que acompanhou a votação no STJ.
Desde então, ela tem denunciado, em seu perfil no Twitter, prints de conversas e de decisões judiciais que mostram planos de saúde suspendendo o tratamento de pacientes com autismo e deficiências graves.
A gente chora mais um pouco e segue. Recebe mais mensagem de mãe que acabou de ter negativa de plano e segue. Lê comentário de mãe desesperada pq o filho com deficiência grave vai perder o homecare, chora de novo e segue. pic.twitter.com/xM8MFsuX53
— Andréa Werner (@andreawerner_) June 9, 2022
PARÁ
A coordenadora Estadual de Políticas para o Autismo, Nayara Barbalho, pontuou que, somente no Pará, existem cerca de 150 mil pessoas com TEA, mas ainda não há dados concretos sobre quantos serão afetados pela mudança na cobertura de planos de saúde. Apesar disso, ela defende que as diversas esferas políticas e sociais busquem reverter a decisão judicial.
“Os usuários devem buscar dar continuidade aos processos judiciais de modo que o direito e as garantias constitucionais sejam efetivamente resguardados através de recursos judiciais. O tema ainda não foi esgotado, pois ainda cabe recurso ao STF, por se tratar de direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988. Continuaremos na luta para que essa situação seja revertida!”, ressalta.
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