“Molhar” a mão do guarda de trânsito, para escapar de uma multa, ligar para aquele conhecido dentro de algum órgão público que recebe filas enormes para oferecer algum serviço e pedir para passar na frente, negociar um “por fora” para conseguir um atendimento que teoricamente não é oferecido. 

De acordo com o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), divulgado no último dia 11, 81% dos entrevistados dos mais de sete mil participantes das coletas de dados em oito estados não vê muita dificuldade em burlar as leis brasileiras e escapar das punições no bom e velho “jeitinho”.

Pelo Índice de Confiança na Justiça Brasileira (ICJBrasil), apurado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), e integrante do estudo, o cenário atual é de descrença na legislação e nas polícias do país. E não bastasse isso, 57% ainda acham que há poucos motivos para seguir as leis no Brasil porque sair impune é realidade na maioria das vezes.

Um taxista que faz ponto entre duas faculdades no bairro do Umarizal, e que não quis se identificar, confirma que em seus 20 anos de profissão, já “conversou baixinho” com guardas de trânsito que queriam lhe multar. A última vez aconteceu quando ele ultrapassou um sinal vermelho e foi flagrado por um agente da lei.

“A multa seria bem mais cara [cerca de R$ 200] e a pontuação na carteira de motorista é alta. Chamei num canto e ofereci dinheiro, ele aceitou e eu fui embora. Não é certo, eu sei, mas estou pagando ainda o carro que uso para trabalhar, não posso vacilar e sair prejudicado dentro da cooperativa pra qual eu trabalho”, justificou, contando que já viu colegas passando, com alguma frequência, por situações parecidas. Garante ainda que a propina foi ideia sua, e não do guarda. “Mas eles aceitam, né? 20 de um aqui, 50 de outro ali e o cara vai tirando ‘uma ponta’”, explica.

Não muito longe dali, em frente a uma das faculdades, o bombonzeiro João Nascimento revelou já ter pago um agente de uma rede de energia elétrica para ser poupado do corte de luz por contas em atraso. “A conta tinha dado alto naquele mês e eu só ia pagar no outro porque não tinha dado, não tive como.

Tinha R$ 15 na hora, estava saindo para trabalhar, e dei para o cara, mas avisou logo que na outra semana voltaria, e que era melhor que eu colocasse logo a luz em dia. Dei um jeito e paguei dois depois, mas naquela hora não dava para deixar a família sem luz em casa, ainda mais que eu moro na Cidade Nova 6, perigoso pra caramba”, defendeu-se.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública aponta, ainda, que a percepção de que é fácil desobedecer às leis no Brasil e de que sempre é possível “dar um jeitinho” crescem de acordo com a escolaridade e renda da população.

Entre os respondentes com baixa escolaridade, 76% acreditam que é fácil desobedecer às leis. Já o porcentual de respondentes com alta escolaridade e a mesma crença é substancialmente maior, chegando a 84%.

O psicólogo clínico e escolar, Davi Medeiros, confirma que a questão é de construção da moralidade em nossa cultura, e alerta para o problema realmente grave, que é a ideia que se tem de Justiça como valor moral. “Sim, em nosso meio cultural e social, vem sendo repassada a ideia de que as leis não são tão sérias assim. Acha-se que não vai existir, de fato, a punição para o erro e assim, brinca-se com a rigidez das leis e normas. É como se cada um quisesse fazer da sua maneira, sem se importar com o bem comum”, explicita. 

“Essa conduta vem sendo vivenciada de geração em geração, transformando o certo no errado e o errado em certo. Quem não se corrompe ou não burla a lei é ‘otário’. É a verdade sendo trocada pela mentira.

Existe uma falha na construção da moralidade do nosso povo, começando dentro da própria família, o que reforça uma má conduta. Os pais usam, implicitamente, o ditado ‘faça o que eu digo mas não faça o que eu faço”, afirma.

“Além das entrelinhas existentes na lei, ocorre o problema da falta de fiscalização e da inconsistência da norma, fazendo com que a conduta das pessoas se torne frouxa e cada um ande pelo seu próprio caminho. Vivemos em dias em que a ética não passa de um discurso elaborado. A tendência da sociedade é de rebeldia quanto aos princípios e valores morais. O hedonismo (busca pelo prazer) sobrepõe aos interesses do social, estimulando as pessoas a se dar bem diante dos oportunismos e da possibilidade de conseguir algo através do poder que acham que tem ( dinheiro, posição, títulos, beleza, etc)”, reconhece o profissional.

(Diário do Pará)

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