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DIÁLOGO

Elias Pinto: Konder e Merquior, o afeto que não se encerrou

Os dois são exemplo de intelectuais que não abdicaram do diálogo capaz de digerir as divergências. E iluminar em volta.

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Imagem ilustrativa da notícia Elias Pinto: Konder e Merquior, o afeto que não se encerrou camera Leandro Konder: “Você é o José Guilherme Merquior?” | ARQUIVO PESSOAL

No momento em que o mundo, tenso, acompanha o braço armado de Vladimir Putin avançar sobre a Ucrânia e a ameaça de o conflito na Europa desencadear uma Terceira Guerra Mundial, no Brasil a polarização política, que nos últimos anos não se abrandou ou acomodou num patamar civilizatório, tende a subir de temperatura, e agressividade, com a aproximação da campanha eleitoral.

Na esperança (que sei, de antemão, frustrada) de contribuir para o desarmamento do espírito político (que com o braço armado nem diplomacia resolve), lembro que o Brasil já abrigou o diálogo entre diferentes “atores” do nosso cenário ideológico, em que se podia divergir sem perder, vá lá, a ternura, a capacidade de ouvir o outro lado, rebatê-lo com argumento articulado, receber a tréplica e manter acesa a chama da inteligência. Claro, também havia arranca-rabos, mas até a estes valia a pena acompanhar em épocas menos indigentes de compreensão – e de leituras.

A página deste domingo relembra dois intelectuais que, ao longo de suas fecundas existências, jamais abdicaram do diálogo capaz de digerir as divergências. E iluminar em volta.

ANÕES DO UNIVERSALÍSSIMO PARÁ

Advogado, professor e filósofo marxista, mas acima de tudo um intelectual generoso e aberto ao debate e ao convívio, Leandro Konder morreu em 2014, no Rio de Janeiro, aos 78 anos. Em seus últimos dez anos de vida enfrentou o mal de Parkinson. Autor de mais de vinte livros, Konder nasceu em 1936, em Petrópolis (RJ), filho de Valério Konder, médico sanitarista, líder comunista, perseguido e preso pela ditadura Vargas e, segundo contemporâneos, um gentleman.

Leandro, por sua vez, exilou-se em 1972, após ser preso e torturado pelo regime militar. Morou na Alemanha e na França até regressar ao Brasil em 1978. Doutorou-se em Filosofia em 1987 no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Foi professor do Departamento de Educação da PUC-RJ e do Departamento de História da UFF. Deixou ainda vasta contribuição como conferencista, articulista de jornais, ensaísta e ficcionista. Em 2002 foi eleito o Intelectual do Ano pelo Fórum do Rio de Janeiro, da UERJ. No meio acadêmico, destacou-se como um dos grandes estudiosos do marxismo e um divulgador das ideias do pensador húngaro György Lukács (1885-1971). Em seus últimos anos coordenou, em conjunto com Michael Löwy, a coleção “Marxismo e Literatura”, da Boitempo. Em 2008 publicou “Memórias de um Intelectual Comunista”, segundo Ferreira Gullar “uma lição de vida, tanto no plano existencial quanto no ideológico, a ensinar-nos a coerência da sua visão de mundo e a tolerância com as opções contrárias. Não se trata de ceder em questões de princípio, e, sim, de aceitar a divergência”.

Poucos sabem ou lembram que a orelha do romance “Os Anões”, de Haroldo Maranhão, publicado em novembro de 1983 (e desde então, infelizmente, fora de catálogo), é de Leandro Konder. A apresentação do filósofo, a par de alumiar o livro do escritor paraense, permanece sendo uma primorosa e sucinta descrição do Pará de ontem e de hoje, a exemplo deste trecho: “E você, leitor, estranhará o plural do título deste fascinante livro. Por que ‘Os Anões’? Por que não “O Anão”, no singular? [Leandro se refere a um dos personagens do romance, Palmar Demisso Colonho, um gigante no ressentimento dotado de apenas um metro e quarenta e cinco centímetros de altura]. No prosseguimento da leitura, entretanto, as coisas vão se esclarecendo: o problema não é de tamanho físico, mas de atrofia moral. O que a natureza do Pará tem de generoso, a vida social possui de amesquinhador”.

Na conclusão da orelha, Konder lanceta de vez a ferida: “E há também o ‘Espanhol’, Hernandez Ola Giratória, com seu pitoresco linguajar e sua imensa vitalidade: o sujeito que, do alto do seu helicóptero, se encarrega de chamar explicitamente a nossa atenção para o fato de que Palmar Demisso Colonho é apenas o mais ostensivamente anão entre os anões: um caso extremo de manifestação plástica, inequívoca, das deformações generalizadas que afetam a fauna desse universalíssimo Pará, onde vivemos todos nós”.

DIREITA X ESQUERDA = DIÁLOGO

A propósito, não lembro se era o José Guilherme Merquior que assinava a orelha de um livro do Leandro Konder ou o contrário [lembro que é de Konder a orelha de “Razão do Poema”, de Merquior], ou as duas coisas. O que importa é o fato de um chamado liberal-conservador, “de direita”, analisar a obra de um dos mais produtivos pensadores de esquerda do país – e vice-versa.

No capítulo em que comenta essa amizade, o autor de “Memórias de um Intelectual Comunista” diz: “A minha amizade com o Merquior me ensinou que também podia ser humanamente muito fecundo o caminho do convívio nas discordâncias, o diálogo que é capaz de digerir as divergências”.

De minha parte eu praticava, desde sempre, nas leituras, essa variedade fertilizante, caminhos que se bifurcam para tornar a se renovar em trilha própria, motor dialético a impulsionar o bom combate (e a leitura que frutifica). E isto se dava em relação aos dois autores aqui em foco. Li (quase) tudo de Merquior e Konder. Pena que o primeiro tenha morrido tão cedo, em 1991, às vésperas de completar 50 anos. Em tão pouco tempo de vida (mas intelectualmente precoce), deixou uma vasta e preciosa bibliografia, que sempre estou relendo. Entre seus livros, tenho particular predileção por “As Ideias e as Formas”, “O Marxismo Ocidental”, “De Anchieta a Euclides”, “O Elixir do Apocalipse”, “Verso Universo em Drummond”, “A Razão do Poema”, este uma impressionante coletânea de ensaios escritos quando Merquior tinha em torno de seus 20 anos.

Quanto a Konder, acompanho-o desde a publicação de seus primeiros títulos (não no calor da hora, no momento em que foram lançados, obviamente), a exemplo do “Kafka: Vida e Obra”, publicado, em 1966, pela já extinta editora José Álvaro (e relançado pela Paz e Terra), e de menos conhecidos, como “Os Sofrimentos do ‘Homem Burguês’”, pela Editora do Senac.

Aliás, a bibliografia de Leandro Konder espelha sua inquietação intelectual. A partir do epicentro de seus estudos, o marxismo (conjugando teoria e prática), seu campo de análise ramifica-se por veredas variadas, trajetórias percorridas em livros: Lukács (seu campo permanente de interesse, pensador que conheceu e entrevistou, como está relatado nas memórias do brasileiro), Barão de Itararé, Walter Benjamin (recomendo um livrinho ainda hoje de leitura proveitosa, “O Marxismo da Melancolia”), Hegel, Flora Tristan, Brecht, Fourier, que, ao lado de outros pensadores e historiadores, abastecem luminosos ensaios políticos e filosóficos escritos por Konder. Ainda incursionou pelo romance, em títulos como “A Morte de Rimbaud” e “Bartolomeu”, além de estudos menos comuns em sua área, como “Sobre o Amor”.

“Memórias de um Intelectual Comunista” não é um acerto de contas de Konder com sua época e seus contemporâneos. O autor é um homem provido de suficiente afeto (afeto que não se encerrou, suponho, parafraseando o título das precoces memórias de Paulo Francis) para não expelir ressentimentos ou mágoas.

O livro também não pretende debater os caminhos da esquerda no Brasil nas últimas décadas. Este assunto já foi tema de livros anteriores do autor: “A Democracia e os Comunistas no Brasil”, “O Marxismo na Batalha das Ideias” e “Intelectuais Brasileiros & Marxismo”. A propósito, para quem quer se iniciar no assunto, recomendo “O Marxismo na Batalha das Ideias” (lançado em 1984 pela Nova Fronteira, ganhou reedição em 2009 pela Expressão Popular), que reúne alguns de seus melhores artigos, abrangendo amplo arco de interesses, num estilo leve, agradável, jornalístico, sem abdicar da profundidade.

A possível perda de densidade, digamos, ideológica nas memórias (e ao leitor interessado, neste caso, recomendo, do mesmo autor, “A Questão da Ideologia”) é compensada por sua narração em forma de deliciosa crônica memorialística.

Na autobiografia, Konder narra a experiência com o comunismo, lembra sua trajetória e compartilha suas ideias com o público. Expõe, de forma leve e generosa, o curso de sua vida – quem foram seus amigos e companheiros (como Milton Temer e Carlos Nelson Coutinho), quais são e foram suas ideias, o que fez e o que escreveu.

O filósofo Leandro Konder fascinou-se pelo comunismo aos 15 anos – tendo como guia o pai, o médico comunista Valério Konder. Leandro entrou para o Partido Comunista, foi preso, torturado e exilado, mas nunca abandonou os ideais – embora tenha tido que rever sua opção várias vezes, ao longo da vida e de seus 55 anos de militância, como conta nas memórias, relato de sua trajetóriapolítica e, principalmente, intelectual.

Sem saudosismo ou arrependimentos, traça um cativante registro, ora valendo-se de humor, ora de ironia, ao rever casos divertidos e curiosos. As histórias são permeadas por fotos especialmente selecionadas pelo autor, que retratam situações importantes em sua vida e momentos ao lado de amigos.

Percorre do âmbito familiar à Ipanema dos anos 1950, cenário da Bossa Nova, de célebres encontros e ainda de sua militância pela Juventude Comunista, até o Golpe de 1964, a prisão e as torturas que sofreu uma década depois, e o exílio na Alemanha. Por meio de suas memórias, vê-se o homem, o filósofo, o escritor, nos momentos mais amargos e duros, a ensinar a coerência de sua visão de mundo e a tolerância com as opções contrárias.

Transcrevo, a seguir, o capítulo em que Konder fala do amigo Merquior.

Merquior

“Mais ou menos na mesma ocasião em que passei a me corresponder com Carlos Nelson [Coutinho], fiquei conhecendo José Guilherme Merquior. Nosso encontro foi casual e aconteceu num festival do cinema russo e soviético.

Sentado na fila de cadeiras à minha frente, um rapaz muito jovem, de rosto redondo, conversava com outras pessoas que estavam com ele e contava coisas interessantes, fazendo comentários inteligentes e divertidos. Quando percebeu que suas observações faziam mais sucesso junto ao público da fila de trás, passou a falar diretamente para mim. Logo, passamos a conversar.

Num dado momento, ele se referiu a um artigo muito ruim que fora publicado havia poucas semanas por um crítico literário. E eu disse:

– O Merquior escreveu um artigo devastador, arrasando o artigo desse paspalhão.

E ele falou:

– Sou eu.

– Você é o José Guilherme Merquior?

– Sou.

Foi aí que começou a nossa amizade.

Nesse primeiro momento da história da nossa amizade, tive a alegria de levá-lo a ler Lukács, autor marxista que ele admirou ao descobrir e que sempre respeitou nos anos subsequentes, quando teria grandes divergências em relação ao ponto de vista luckacsiano e marxista, em geral.

Merquior era um crítico extremamente competente e erudito em suas avaliações literárias e filosóficas. Como leitor de poemas, não me lembro de ter conhecido alguém melhor. Muitas vezes me deu ótimas indicações de leitura. E eu, excluída a descoberta de Lukács, jamais lhe falei de um autor realmente importante que ele já não tivesse lido.

Enquanto a minha amizade com Carlos Nelson se alimentava de concordâncias, de ideias politico-filosóficas que convergiam, a minha amizade com o Merquior me ensinou que podia ser humanamente muito fecundo o caminho do convívio nas discordâncias, o diálogo que é capaz de digerir as divergências.”

[trecho de “Memórias de um Intelectual Comunista”]

* ELIAS RIBEIRO PINTO É COLUNISTA DO CARDENO VOCÊ DO DIÁRIO DO PARÁ

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