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DAQUI TE ESCREVO

A solidão é um vício quase sem cura, mas abri uma exceção

Nesta quinta-feira (28), o jornalista e escritor Anderson Araújo te conduz para dentro de um quarto onde uma mulher dorme e um homem a observa enquanto revê a história dos dois e aguarda o que deve acontecer nas próximas horas. Leia a coluna Daqui te Escrevo com textos literários publicados semanalmente no DOL.

Imagem ilustrativa da notícia A solidão é um vício quase sem cura, mas abri uma exceção camera Arte: Emerson coe e Thiago Sarame

Agora ela dorme um sono de pedra e eu a invejo deitada na minha cama. Se não a conhecesse, teria certeza de que levantaria amanhã moída pela posição que se encontra. Mas, que nada, acorda sempre com um sorriso e os olhos inchados dela roubam a beleza das manhãs com remela e tudo. É irritante e admirável. É como se ela reinaugurasse o mundo ao se espreguiçar.

Sim, ela é chama já nas primeiras horas. Enquanto ouço os barulhos domésticos do apartamento ao lado, ela cavalga e resfolega, no cio, ritmada.

Amazona e égua,

vênus dentro do claustro,

sol no céu de julho.

Gemido enfático,

uivo elástico,

ganido tétrico,

suspiro trágico,

voz de pássaro,

movimento frenético

letárgico.

Acorda o país, a província, a cidade, a vizinhança. Incomoda o povo ressonado ainda no calor da cama - Até a mim no começo, acostumado a coitos secretos, sutis, abafados ou sem espaço pra liberdade total.

Por falar nisso, finalmente, não faz muito tempo, estamos mais à vontade para vadiar. Me mudei pra cá, longe da vila de quartos de madeira de antes, onde as brechas das tábuas a expunham a um pavor real dela, o de ser espiada pelos adolescentes que faziam plantão na boca de fumo quase ao lado. Agora estava ali entregue ao despudor, despreocupada.

As coisas começaram pelo começo. Me encomendou um artigo. Fiz num dia em que nenhum centavo previsto dos freelas caiu na conta. A geladeira vazia e meu coração cheio de ódio. Ela adorou o que enviei. Pediu poucas alterações. O contato ficou nesse cinza da cordialidade profissional. Até que ela me enviou uma dúvida pelo WhatsApp e aproveitou para perguntar, como quem não quer nada, se eu gostava do assunto que ela havia encaminhado, como aparentava na fluidez do texto.

Fui absolutamente honesto:

- Detesto.

E ela se intrigou:

- Como pode?

- Faço o que os clientes pedem apenas.

O debate varou a madrugada, entre voltas, desvios e fugas do tema, e encerrou com um vídeo dela se masturbando com o cabo da escova de cabelo, assim que a conversa degringolou para onde eu jamais esperava. O mundo não é o que pensamos.

Na noite seguinte, ela bateu à minha porta, com as melhores intenções. Quando tirou a calcinha, observei e entendi como um agrado. Não precisava tanto.

- Faça como preferir, mas não tenho nada contra pentelhos. Muito pelo contrário, aprecio.

Ela sorriu e me abraçou. Só implicou com as frestas depois de gozar. Ainda cansada, viu as riscas nas paredes quando um carro da PM passou na via estreita e as luzes azuis e vermelhas penetraram meu barraco. Reclamou. Vedei tudo com fita gomada no dia seguinte. O cômodo ficou mais feio ainda e ela voltou muitas vezes.

Era ela retomada,

recomeço,

prazer novo.

Fui um menino que tentou esperar o amor pra conhecer o sexo. Na minha ingenuidade, necessitava que essa experiência fosse com uma mulher que enxergasse em mim alguém pra vida inteira. Algo muito perto do sagrado. Só não contava que minha paciência não suportaria a pressão social e hormonal. Feitos meus 20 anos, com todos os conhecidos já iniciados há tempos, desisti da espera e me entreguei. Ela tinha 25 anos e, por sorte minha, conhecia bem os meandros do prazer.

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Minha frequência sexual sempre foi boa, todavia estava há muito tempo sem nenhuma prática por ter percebido que os convites rarearam conforme a minha idade avançava. Os que tentava fazer e os que me faziam. Mesmo quando tive algumas poucas oportunidades, a falta de disposição e o medo de falhar por falta de costume me impediram de consumar qualquer tentativa de intercurso sexual ou mergulho emocional.

Havia me transformado em pedra. Uma pedra que acordava, abastecia-se de café, escrevia pra sobreviver, tomava um trago e dormia pra repetir em ato contínuo tudo de novo. Dia após dia. Até a mensagem, o vídeo, a visita dela.

Era ela ruptura,

renascimento,

reconstrução.

Acabou por dinamitar minha rotina e acabei por acomodá-la em minha vida, sem deixar de sentir uma imensa contrariedade. Eu sei, sou contradição. Mas, me diga, quem não é? Odeio ser obrigado a me adaptar, odeio interações com terceiros, odeio precisar contar sobre o que eu já sei sobre mim para que outra pessoa saiba e use, possivelmente, para me atacar no futuro. Com ela minhas barreiras foram lançadas ao chão sem mais nem menos, porém.

Era ela invasão,

força,

descaminho.

E por ela agora tenho outra casa, outro trabalho, mais dinheiro, móveis novos, outra aparência - mais jovem, tenaz, tatuagens e um corte de cabelo. Me alimento melhor e faço exercícios. O sexo é parte do meu cotidiano, o que pra mim também foi uma enorme mudança. O que me incomoda, de alguma forma.

Sou eu reação,

inconstância, paralisia,

ambiguidade em estado bruto.

Sinto a minha antiga presença como a de um defunto, a me assombrar e me chamar de volta para o que eu era. Coisa que a mim não parecia ruim até hoje. Coisa que desejei sempre nas ocasiões de algum desentendimento entre mim e ela, mesmo as discussões mais bestas e irrelevantes. Meu espírito nem sempre está disposto ao convívio, nem sempre está com paciência, confesso.

Sou eu teimosia,

avareza e

neurastenia.

O fato é que nunca a quis comigo sem antes inventar mil exigências e a rejeitei o quanto pude dentro de mim mesmo. A ideia de algo duradouro me afligia em níveis alarmantes, mas nunca ao ponto de moldá-lo com coesão e externá-lo a ninguém: quero minha solidão de volta.

Ao contrário, esquecia, esquecia esse desejo:

quando se despia;

quando ela chegava;

quando não estava na casa;

quando saíamos à rua juntos;

quando esperava à mesa pelo café;

quando ria com os dentes enormes;

quando ela arfava depois do esforço da foda;

quando conversávamos à noite no breu até dormir;

quando ficávamos em silêncio sentados no chão da sala;

quando zanzava nua sem atentar para própria nudez, como uma Eva.

Esquecia de tudo e a minha voz interna se abafava e eu não me ouvia nunca.

Era ela um enigma,

certeza,

tudo junto.

Noutras vezes, a tal voz interna continuava a me ordenar em viver somente comigo mesmo, como agora, nesta madrugada, a ressoar na minha cabeça. No momento presente, utilitária e não aleatória, ela tenta me convencer, persuasiva como um vendedor de carro.

A voz tem a seu favor a razão da circunstância.

Agora ela ainda dorme e estou aqui, na janela, olhos nas primeiras luzes dos postes que se apagam frágeis, o céu começa avermelhar e anunciar o dia. É a partida da última noite, a que desejei tantas vezes, a que a voz anunciou renitente e agora defende apaixonadamente para me proteger da queda, que se cumprirá, enfim, quando ela acordar, de olhos inchados, decidida e livre, como um pássaro rumo sabe deus pra onde.

Alquebrado pela insônia e ansioso pelas próximas horas de sol alto, sou alívio e medo, espanto e ciência, agonia e aceitação de que as coisas, por fim, são assim mesmo.

Anderson Araújo é escritor, jornalista da equipe do Dol e escreve às quintas.

Conto publicado originalmente no Blog Daqui te Escrevo.
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