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DAQUI TE ESCREVO

A eternidade dos amantes pra quem anda perdido de amor

Próximo ao Dia dos Namorados, o colunista Anderson Araújo se arrisca a contar o que é a eternidade par quem ama no conto de hoje da coluna Daqui te Escrevo. Texto proibido para quem vai passar esse dia 12 de junho sozinho! A coluna é publica semanalmente no DOL.

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Imagem ilustrativa da notícia A eternidade dos amantes pra quem anda perdido de amor camera Arte: Emerson coe e Thiago Sarame

Queriam que fosse eterno. Estavam de mãos dadas em silêncio, quando ela disse que poderia morrer naquele instante, que morreria feliz. Disse, não. Sussurrou. Tão baixinho que o homem ouviu mal, mesmo a um palmo de distância, deitados em uma rede. Captou apenas o verbo morrer e estranhou, porque a vida lhe atravessava o pensamento naquela exata hora. Queria viver, destruir o tempo, se preciso fosse. Riu e a beijou nos olhos e se achou tolo por não ter pedido para que ela repetisse o sussurro ao pé do ouvido.

Conheceram-se na pandemia. Trancados cada qual no seu canto, confidentes imediatos, pegados ao celular. Não havia muita constância na conversa. De vez em quando, ela sumia ou respondia quase nada, e ele compreendia que eram sinais de que estava redondamente enganado, mais uma vez. Não deveria mais pensar nela nos intervalos apartados. Não deveria tentar materializá-la, nem pensar em canções, menos ainda em escrevê-la. Era uma fantasia, alguém do outro lado de uma muralha de riscos num tempo de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

Mas ela ressurgia, sempre.

E ele se esquecia das próprias promessas e da sensação de desamparo. Da parte dela, depois contou, tinha medo. O receio era de que ele interpretasse os afastamentos frequentes como desinteresse ou estranheza, quando, na verdade, era para poupá-lo do efeito de um medicamento que lhe reduzia o tempo acordada e atrapalhava as conversas. Por ela, estaria 24 horas ligada naquele homem que apareceu do nada.

Em um impulso, em desafio ao bom senso e às regras sanitárias, decidiram se encontrar. Local aberto, depois um bar com mesas na calçada. Chovia as águas de abril. Estavam frente a frente, sem acreditar no encontro. Ela o achou bonito, apesar do cansaço e de certa tristeza quando sorria. Ele confirmou o que já não lhe cabia mais negar – era ela a mulher que ele esperou a vida toda, em carne, osso e vestidinho preto de matar.

E, então, as mãos se acharam, ali mesmo na mesa úmida de cerveja, antes que todo o resto do corpo percorresse o caminho dos amantes. Foram as mãos as pioneiras a desbravarem a sensação física, magnética e balsâmica que um provocava no outro ao menor toque.

Entorpeceu-se com a presença dela; embriagou-se com a existência dele.

Dormiram juntos já na primeira noite e muitas vezes depois. Em outras circunstâncias nem dormiram de tanto que se desgastaram misturados e imersos um no outro desde que as línguas se encontraram na frente do bar, afoitas, como a de adolescentes, certas da urgência do momento, como a de velhos.

Muito além do nó físico que os unia, também se apegaram no que ia além da matéria: falavam-se todos os dias, liam juntos e trocavam livros, riam muito, enviavam velhas cantigas extraídas do gosto pessoal muito diferente que cada um possuía; tinham interesse real pelo que cada um seria e foi antes de terem se conhecido: como era o menino que precedeu aquele homem encegueirado por ela? Por onde andou a mocinha que se transformou na mulher que agora lhe exigia totalmente nu e lhe amava como se o amanhã não existisse ou não viesse nunca?

Responderam essas e outras perguntas aos poucos, em passeios na rua, trancados em casa, iluminados pelas luzes piscantes do quarto, na escuta atenta que praticavam mutualmente, na compreensão do calar como exercício da intimidade, no gozo feroz das camas encharcadas de suor, no gemido abafado das madrugadas, nas manhãs de domingo, nas sextas pós exaustão da semana de trabalho, nas quartas de tédio da rotina, nas quintas de esperança sutil no porvir, dia após dia.

Em menos de um ano, falaram em se casar - logo eles, desiludidos das últimas tentativas, nunca alinhados às tradições, avessos a cerimônias. Nunca quiseram filhos antes, mas enquanto se comiam como duas feras desejam, ardentes, que concebessem sem demora uma criança, que viria com os olhos noturnos dela, as panturrilhas de caçador dele e as manias dos dois. Haveria de ter um nome com três sílabas assim que nascesse, homem ou mulher. Das vezes que acharam que ela estava prenha e não se confirmou, sentiram-se aliviados, mas também estranhos pela inconclusão daquele desejo mal formulado.

Todos que os viam pensavam em um amor possível, táctil, realizável, telúrico, bonito. Idealizam sem saber que tudo finda, até as noites mais lindas perdidas na memória, ou já sabidos de que brilhos tão intensos prenunciam a escuridão, mas que as exceções persistem além da literatura, invertem a lógica, contrariam o espírito do tempo.

Meses depois, do dia em que ele só ouviu o verbo morrer na rede enquanto pensava em estender a vida para sempre, perderam-se.

Vazios.

A porta bateu, ninguém pediu pra ficar nem para que ficasse. Os olhos apagaram e se desviaram. A luz bruxuleou, o laço se desfez, a corda rompeu e o riso, não se transformou em pranto, como no soneto, apenas desmanchou e deu lugar a bocas cerradas, que nunca mais disseram nada sobre o que aconteceu. Nem entre eles, nem com ninguém.

Perderam-se as mãos nas mãos, os pés nos pés, as palavras no abismo, os silêncios no céu na boca, as noites e os dias. E cada um se foi para seu rumo com cacos um do outro espetados na derme e na epiderme e levaram consigo seus sacos de memórias, mágoa e amargor.

O que aconteceu? Pareciam tão felizes.

De vez em quando, lembram-se, em flashes, que veem do nada, descompassados, cada qual no seu lugar. É como um filme antigo, de cenas embaralhadas, cheias de chuviscos e fantasmas. Ou um velho livro roído de traças com páginas ausentes. Ou um sucesso popular que não toca mais em lugar nenhum, mas trechos do refrão sobrevivem, renitentes, na boca de uma velha senhora em uma cozinha anônima nos cafundós do Brasil.

Quando as lembranças vêm, ele finge ignorar e engole saliva para que o coração volte ao peito. Já ela prende o choro e corre para o banheiro para arrumar maquiagem. É um instante apenas, como um soluço que devolve, em segundos, a eternidade prometida um para o outro, essa poeira tênue, imperceptível, que se espalha pelo ar até encontrar em quem se alojar para começar tudo de novo.

Anderson Araújo é escritor e jornalista da equipe do DOL e escreve às sextas-feiras.

Mais contos como esse podem ser lidos no blog do autor, o Daqui te Escrevo.

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