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DAQUI TE ESCREVO

Uma estrela de cinema dançando no salão numa noite de Belém

A noite de Belém tem de tudo, inclusive estrelas de Hollywood dançando tecnobrega. O jornalista e escritor Anderson Araújo conta nessa história na crônica desta sexta-feira (24) na coluna Daqui te Escrevo.

Imagem ilustrativa da notícia Uma estrela de cinema dançando no salão numa noite de Belém camera Arte: Emerson coe e Thiago Sarame

Apareceu de blusinha e calça jeans no meio salão. Dançava para si mesma. Levantava os braços, as axilas à mostra tinham uma penugem rala e castanha clara como os cabelos. Será que é ela mesmo? Mexia os ombros e os quadris, feito uma cobra. No máximo, um metro e sessenta contra a luz. Olhos fechados, sorriso de enigma, efeito entorpecente ao redor.

Quando abriu os olhos, me assustei. Não é todo dia que aparece uma atriz de Hollywood, assim, bem na sua cara. Se bem que há relatos de Daryl hannah zanzando pela cidade durante as gravações de “Brincando nos campos do Senhor”. Nada é impossível na magia da noite belenense.

No salão, a minha querida estrela me olhou de volta, me trespassando, indiferente, como se eu fosse de vidro. Curvou-se, juntou os antebraços à frente do rosto, as mãos pouco a cima da cabeça, virou o pescoço para o lado, suave, e gingou lenta, lisérgica. Depois sumiu.

Quando o cantor cantou o Samba do Grande Amor, ela brotou de novo do meu lado. Agora estava presente, frenética, serelepe. Cantava a plenos pulmões. Tinha cá pra mim, que agora sim eu vivi, enfim, um grande amor (mentira!). Braços pra cima, pés compassados, bunda pra lá e pra cá.

Quando a música acabou, alguém disse “você parece…” e eu emendei: a francesa de 007. Marion Cotillard, ela devolveu. Mas, os olhos eram de ardósia, como os do Chico. Comparação ridícula e impertinente de minha parte. Definitivamente, ela não tinha nada a ver com septuagenário.

Espiou dentro do meu copo e disse simpática que as bebidas do lugar eram horríveis. Prefiro cerveja. Continuou a dançar e cruzou para minha esquerda. Falou com uma amiga imaginária: esse cara está me incomodando. Não era eu, ainda bem. Era um tiozinho com porte de boxeador e careca total e reluzente. Importunava as mulheres do entorno, todo fagueiro e sem nenhuma noção.

Cheguei mais perto e perguntei interessado:

- Me diz teu nome?

- Ismênia. - Ela mentiu.

- Um nome de visagem desse.

Mais tarde, dançamos juntos.

Rápidos, no tecnobrega, numa coreografia cheia de rodopios que fingi conduzir. Pensei em Marlon Brandon, em Don Juan de Marco, com minha camisa branca e minha pança obscena.

Giramos no ambiente saturado de umidade. Ela sentou-se. Acho que não gostou. Vou ter um infarto, ela disse, arfante. Eu também, respondi, suado feito um porco, torto, quase morto.

Sumiu de novo, para aparecer depois com outro rapaz e abandoná-lo como fez comigo.

No fim da festa, estava recostada no parapeito de madeira do Apoena. Sonhava com um cigarro entre os dedos e olhava a noite que se espraiava interrompida pelas luzes de mercúrio da Avenida Duque de Caxias. Os olhos quase cerrados, os cabelos curtos pouco acima dos ombros. Dessa vez parecia mais com a Eva Green.

Era uma gata de pisada leve numa casa barulhenta e cheia de gente, a ignorar o mundo, consciente da própria presença discreta e impossível de passar despercebida.

Deixei-a quieta, no seu canto, como se deve fazer em respeito às almas felinas e às belezas sobrenaturais.

Antes de ir, me despedi com um beijo na testa, como um avô amoroso, e ela sorriu, ainda intocável, como uma constelação.

Desci as escadas do bar. A música ainda estava alta.

Não a vi nunca mais.

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Anderson Araújo é escritor e jornalista da equipe do DOL. Escreve às sextas.

A crônica de hoje foi publicada originalmente no blog do autor, o Daqui te Escrevo.

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