Quando abriu os olhos, me assustei. Não é todo dia que
aparece uma atriz de Hollywood, assim, bem na sua cara. Se bem que há relatos
de Daryl hannah zanzando pela cidade durante as gravações de “Brincando nos campos
do Senhor”. Nada é impossível na magia da noite belenense.
No salão, a minha querida estrela me olhou de volta, me
trespassando, indiferente, como se eu fosse de vidro. Curvou-se, juntou os
antebraços à frente do rosto, as mãos pouco a cima da cabeça, virou o pescoço para
o lado, suave, e gingou lenta, lisérgica. Depois sumiu.
Quando o cantor cantou o Samba do Grande Amor, ela brotou de
novo do meu lado. Agora estava presente, frenética, serelepe. Cantava a plenos
pulmões. Tinha cá pra mim, que agora sim eu vivi, enfim, um grande amor
(mentira!). Braços pra cima, pés compassados, bunda pra lá e pra cá.
Quando a música acabou, alguém disse “você parece…” e eu
emendei: a francesa de 007. Marion Cotillard, ela devolveu. Mas, os olhos eram
de ardósia, como os do Chico. Comparação ridícula e impertinente de minha
parte. Definitivamente, ela não tinha nada a ver com septuagenário.
Espiou dentro do meu copo e disse simpática que as bebidas
do lugar eram horríveis. Prefiro cerveja. Continuou a dançar e cruzou para
minha esquerda. Falou com uma amiga imaginária: esse cara está me incomodando.
Não era eu, ainda bem. Era um tiozinho com porte de boxeador e careca total e
reluzente. Importunava as mulheres do entorno, todo fagueiro e sem nenhuma noção.
Cheguei mais perto e perguntei interessado:
- Me diz teu nome?
- Ismênia. - Ela mentiu.
- Um nome de visagem desse.
Rápidos, no tecnobrega, numa coreografia cheia de rodopios
que fingi conduzir. Pensei em Marlon Brandon, em Don Juan de Marco, com minha
camisa branca e minha pança obscena.
Giramos no ambiente saturado de umidade. Ela sentou-se. Acho
que não gostou. Vou ter um infarto, ela disse, arfante. Eu também, respondi,
suado feito um porco, torto, quase morto.
Sumiu de novo, para aparecer depois com outro rapaz e abandoná-lo como fez comigo.
No fim da festa, estava recostada no parapeito de madeira do Apoena. Sonhava com um cigarro entre os dedos e olhava a noite que se espraiava interrompida pelas luzes de mercúrio da Avenida Duque de Caxias. Os olhos quase
cerrados, os cabelos curtos pouco acima dos ombros. Dessa vez parecia mais com
a Eva Green.
Era uma gata de pisada leve numa casa barulhenta e cheia de
gente, a ignorar o mundo, consciente da própria presença discreta e impossível
de passar despercebida.
Deixei-a quieta, no seu canto, como se deve fazer em
respeito às almas felinas e às belezas sobrenaturais.
Antes de ir, me despedi com um beijo na testa, como um avô
amoroso, e ela sorriu, ainda intocável, como uma constelação.
Desci as escadas do bar. A música ainda estava alta.
Não a vi nunca mais.
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Anderson Araújo é escritor e jornalista da equipe do DOL.
Escreve às sextas.
A crônica de hoje foi publicada originalmente no blog do
autor, o Daqui te Escrevo.
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Vá ouvir Está no Ar II.
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