Uma roda se formou em volta dos gladiadores e o alarido da plateia despregou as matriarcas de frente da TV, que exibia a novela das setes, quando foi anunciado o vencedor. Ganhou por quase nocaute — faltou pouco. Não me lembro mais o motivo de chegar nessa troca de sopapos, mas nunca esqueci o pequeno Muhammad Ali que me derrotou. Minha visão ainda era perfeita, não tinha os três graus de astigmatismo e os dois e meio de miopia de hoje, entretanto a coordenação motora era das piores e ele já sabia havia muito tempo. Explorou minhas fraquezas como poucos. Tudo na base da argúcia precoce de mini touro indomável.
Feroz, partiu como um trem pra cima de mim e deu o primeiro soco, que amassou minha orelha. Levava a sério, tinha pose de boxeador, diferente de mim, que lidava com a luta sem muita sede, como um ator cheio de preguiça a entregar as falas sem muita vontade. Descemos pela ladeira atentos um ao outro e ao terreno acidentado. Pedras, paus, fim do caminho.
Era junho ainda, o cheiro de pólvora queimada das bombinhas de São João ainda estava no ar e a chuva do dia anterior transformou a rua de terra batida em uma pista de sabão. Joguei as sandálias fora para não me estabacar. Os moleques maiores atiçavam e colocavam a mão espalmada entre nós dois:
_ Quem for macho cospe aqui!
Frente a frente, ele não se fez de rogado: escarrou na minha cara sem me dar tempo de revidar.
As gargalhadas e os uivos aumentaram ao redor. Os vira-latas sentiram cheiro de sangue.
Após a cusparada, ao invés de usar a raiva como combustível e mudar a tática, me abati mais ainda, a moral foi a níveis negativos. Limpei a saliva perto da boca e bateu aquele cheiro nauseante de cuspe seco. Queria ir pra casa, tinha acabado de tomar banho. Quem mandou ter saído pra rua?
Os jogos masculinos de convívio naquela faixa etária incluíam o confronto físico e eu, como sempre, perdia todos. Não estava acostumado. Hora ou outra tinha um porradal. A rua era sempre tomada de crianças nesse tempo — tenho impressão que sumiram todas hoje em dia. Estavam o tempo todo a brincar na parte seca da passagem ou correr desesperadas pelas estivas, onde os temporais e a ausência de saneamento formavam pântanos cheios de marias-moles, lodo, excrementos e lixo plástico, morada perfeita de muçuns, tamuatás e cururus.
Os meninos de um ou dois anos a mais notaram de imediato minha letargia e falta de jeito: sabiam que eu não era páreo pra ninguém. Não me enturmava no futebol, via as pipas e rabiolas como algo inútil, andava com desengonço, não era em bom em peteca, fura-fura, bozó, em nada. Nas últimas brigas, havia perdido com vexame. Marcelinho me derrubou de cima das pontes e caí no igapó. Risos, muito risos. Vai lá, volta e quebra a cara dele, diziam. Eu não ia. Apanhar duas vezes pra quê?
Felipe, no ringue improvisado desta reminiscência, era parte da turminha mais próxima, que incluía o Careca, o Quedel, a Baratinha e uma renca de coadjuvantes. Felipe e eu cansamos de buscar juntos o leite Kiara, doado pelo governo aos miseráveis no fim dos anos 1980, no posto de troca lá na Praça Eduardo Angelim. Entregávamos os tíquetes e recebíamos as embalagens de plástico gordas do líquido branco. Pas-teu-ri-za-do, eu lia. Será que também tinha pastel ali dentro do pacote? A gente ria e voltava a pé com sacola cheia, encomenda das nossas mães, com direito a cada um vir bebendo um litro do leite peidão no caminho.
Agora estávamos ali, cara a cara, prontos para matar e morrer.
Ele era mais novo, ano e pouco. Uma pequena fera, de cabelos lisos castanhos escuros grudados na cabeça, porte de atleta, entroncado, pequenos olhos indígenas de bastos cílios, a pele da cor de bacaba e as pernas marcadas de velhas e novas piras e curubas, como as minhas; os pés cheios de frieiras, como os meus; as mãos já pedregosas, como as minhas. Afinal, a gente andava na mesma vala, revirava os mesmos entulhos, enfrentava as mesmas enchentes, corria nos mesmos matos e pulava as mesmas cercas de caibro dos mesmos quintais.
Único lugar frequentado por Felipe onde eu não ia nunca era o Jaque, uma referência às matérias do Globo Repórter com o marinheiro e documentarista francês Jacques-Yves Cousteau, um herói para crianças da nossa idade, um cara que conhecia o fundo do mar e viajava o mundo em expedições muito doidas. O Jaque da banda de cá era só um igarapé já poluído, pras bandas da Doutor Freitas, onde as crianças da Pedreira e Sacramenta iam se divertir, como se estivessem numa piscina dos chiques clubes sociais da cidade. Era nossa Assembleia Paraense e Pará Clube mais próximo e acessível para quem nunca teria a chance de conhecer esses ambientes naquela idade. Minha mãe e minha avó quando souberam da novidade foram enfáticas:
_ não vai! Não vai e ponto final!
Havia risco de afogamento ou picada de cobra ou de pegar uma doença ou ser estuprado ou assassinado. Ou pior: tudo isso junto.
_ Soube que acharam um menino morto lá. Não vai, não. Se eu souber que foi, vai levar uma pisa.
E eu não ia. Por medo. Mais de morrer do que pegar uma surra. Mas invejava os aventureiros que se arriscavam nas brenhas até o córrego, o qual nunca vi de perto, mas na minha imaginação era paradisíaco, límpido, com boias de câmeras de pneus de caminhão pra flutuar e cipós para se pendurar e se jogar, tchibum, nas águas esverdeadas geladinhas cercadas de imensas árvores e bichos por todo lado. Quando voltavam, os pequenos exploradores contavam as peripécias e riam entre si das histórias. Eu ficava de fora, sorriso amarelo.
_ Bora amanhã! A gente pega um tubarão.
_ ou um jacaré!
_ uma onça também!
_ A mãe dele não deixa!
E riam da minha cara. Felipe era um deles. Galhofeiro, valente, independente já naquela idade, ainda molhado e cinza de tuíra dos mergulhos no Jaque.
Agora estava ali, babando de ódio, um micro Maguila cheio de fúria pro meu lado. Me deu mais um soco, porém, não deixei barato: sapequei um safanão na fuça. Atingido em cheio, a ferocidade aumentou e ele me agarrou pela camisa, a dentadura cerrada, os olhos esbugalhados, cara de doido. Aproveitei minha vantagem de tamanho, apliquei uma gravata e golpeei a cabeça dele sem muita força nem direção. Os espectadores vibraram com o meu mise-en-scène.
_ dá-lhe nele, pai dele!
Ágil, Felipe deu um jeito de sair e tentei agarrá-lo de novo. Mas, a gente se desequilibrou e caiu no chão, tudo que eu não queria. Levantei e meu erro foi me preocupar com o short. Puta que o pariu, estava limpinho. Ele aproveitou os segundos de distração e me empurrou até o táxi do Tatá, um Chevette amarelo que tinha virado sucata em frente à casa do motorista, um sujeito barrigudo, de cabelos encaracolados e costeletas, de dentes ruins, que andava quase sempre sem camisas e uma calça de tergal marrom com o rego da bunda à mostra. Aos fins de semana, perturbava os vizinhos com merengues a toda altura dentro da casa toda fechada. Uipitipitiiiii, a gente ouvia onde quer que estivesse na nossa rua.
Felipe deu um jeito de me escorar no capô do carro velho. Ali foi minha perdição: começou uma sequência violenta de golpes. Minha cara ardia e senti inchar meu supercílio na hora. Para, porra! Ele não parava. Até que John Lennon, um adolescente bem mais velho, magro, cordão de ouro no pescoço e topete, apartou.
_ parou, parou, parou. Tá bom já que é.
Felipe venceu. Tinha uns oito anos apenas, uns 30 kg de puro vigor.
Voltei pra casa com mais uma derrota nas costas. Imundo e de cara quebrada. Direto pro banheiro no fundo do quintal. Minha mãe viu, me esculhambou enquanto passava mertiolate nas feridas. Ardeu que só. Minha avó chegou com sermão pronto: já falei pra não se meter com esses moleques! Eles não gostam de ti!
Era verdade, eu fungava, agora livre para chorar sem ser achincalhado por ninguém. Fiquei na porta da cozinha, aberta para o quintal, agora a refletir sobre o que eu poderia ter feito. Vingança! Eu queria vingança.
Minha mãe foi tomar partido na casa de dona Maria José. O que ela poderia alegar? Seu filho caçula amassou o belo rosto do meu filho quase dois anos mais velho do que ele! Deu em nada a queixa. Devem ter rido da coitada por ter um filho tão molenga e saco de pancadas.
A arnica e o mercúrio cromo foram meus melhores amigos nos dias seguintes e agradeci que estava de férias da escola. Não precisaria explicar pra ninguém que peguei uma sova, pelo menos. Numa quarta-feira qualquer, a contenta quase esquecida, meu pai fez o anúncio tão esperado: vamos pra Outeiro. As crianças de casa vibraram, minhas irmãs e eu.
O dinheiro nunca dava pra viajar pra um interior mais longe que fosse, embora meu pai trabalhasse de domingo a domingo, de sol a sol. As folgas dele eram raras e nunca fomos à praia nos finais de semana. Quando íamos, era sem nenhum planejamento, geralmente, às sextas, pra Outeiro, a opção mais próxima e mais barata, curtir como se não houvesse amanhã as belezas da Praia do Amor. Como o recesso escolar estava no auge, ele decidiu que íamos no meio da semana pra evitar a multidão e transtorno.
A farofa, o frango assado e toda a tralha já estavam no fusquinha lá fora, quando ouvimos o grito.
Depois do primeiro, outros vieram em sequência, cada vez mais fortes, cada vez mais doridos, cada vez mais desesperados. Em segundos, virou uma gritaria de ranger de dentes, berros, soluços e palavras soltas.
_ Ai, meu deus, por que, meu deus?
Aos poucos moradores romperam a sesta e brotaram nas portas das casas, naquele começo de tarde quente como o inferno. Sem demora, estavam no meio da rua, mãos nas cadeiras ou braços cruzados e tentavam entender. As mulheres acudiram dona Maria José.
Felipe morreu.
Morreu…
Morreu?
Morreu!
Meningite meningocócica.
Ouvi pela primeira vez as duas palavras juntas e nunca mais saíram do meu dicionário de terror infantil.
Outeiro foi cancelado na hora sem ninguém contestar e ficamos recolhidos a espera de outras notícias.
Não teria velório, porque a doença era altamente contagiosa e letal. O corpinho seria levado direto para o cemitério em um caixão de chumbo. Nem a mãe nem os irmãos poderiam se despedir do menino, agora irremediavelmente morto.
Nunca mais banhos de igarapés, nunca mais leite peidão, nunca mais brigas de rua.
As mães da vizinhança foram alertadas pra ficar de olho nos filhos pequenos principalmente. Uma lista de sintomas circulou de boca em boca. Abram as janelas, limpem as casas. A peste estava entre nós, no ar, e matava em poucos dias. Uma febre, uma dor de cabeça, desmaios. Tudo rápido. Chama um carro, ruma pro Barros Barreto e adeus.
No dia seguinte, vi os parentes de volta do sepultamento. Na minha memória, era muito cedo, na luz difusa da aurora, porém, sei que enterros não acontecem nesse horário. A mãe arrasada e os irmãos de cabeça baixa a pisar o barro da rua, ao passar no local do nosso embate, onde uns 30 anos depois homens desconhecidos matariam dona Deja, ex-mulher de Tatá. Retornaram ocos à pequenina casa de madeira em que viviam.
Imaginei o cadáver do meu rival embaixo da terra lacrado no caixote de metal, de olhos fechados, as mãozinhas sobre o peito, agora purificado, distante de tudo, perdoado na guerra inocente de meninos, perdido no retrato encravado na memória, um filho extraviado do dia pra noite, um buraco no coração da mãe, a imagem congelada no tempo, o que entre nós nunca envelheceria, campeão e inerte para sempre.
Uma bola de bilhar se formou na minha goela, as lágrimas cederam e molharam os hematomas do meu olho, que insistiam em marcar a nossa última luta.
Anderson Araújo é escritor e jornalista da equipe do DOL. Escreve às sextas.
A crônica de hoje foi publicada originalmente no blog do autor, o Daqui te Escrevo.
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