Estávamos no The Beatles e eu reparei num grupo de pessoas bem vestidas, como se tivessem acabado de sair de uma festa. Destoavam dos clientes frequentes, quase sempre rotos, eu inclusive. Tinha até um sujeito com suspensório e cabelos grisalhos parecido com o ator Otaviano Costa. Pensei que fosse uma confraternização do já extinto Video Show. No meio do povo, uma gordinha super sensual dançava e sorria. Aproveitava a música e a luz espatifada no globo espelhado para seduzir com piscadelas e a boca entreaberta. Falei pro meu irmão: acho que a moça te quer. Ele riu.
Aos desavisados, o The Beatles fica na fronteira entre o Jurunas e a Cidade Velha, um o bairro do samba e o outro um aglomerado de ruínas e velhos prédios do que foi a Belém da Belle Époque. O bar é recheado de referências às paixões do João, o dono: vinis, principalmente de artistas brasileiros, e política. Entre as dezenas de capas dos bolachões, tem uma foto do jovem João ao lado de um Lula tão novinho quanto. O sapo barbudo está olhando para baixo e o dj-barman-empresário se mostra embevecido com a presença do sindicalista. A fotografia está lá para deixar evidente: esse lugar é meio intelectual, meio de esquerda e tem posição.
Se você é da direita, já vai se retirando porque vai passar raiva por aqui.
A esquerda institucional lulista, os remanescentes do comunismo, os malfadados e isolados da causa operária mais bruta, os cansados do Partido dos Trabalhadores em busca de uma terceira via (risos) e a esquerda cirandeira gratiluz identitária de apartamento zanzam por lá, numa boa. Na ocasião das eleições de 2018, eleitores de Fernando Haddad, Ciro Gomes, Marina Silva e Guilherme Boulos se esbarravam, cumprimentavam-se com cordialidade e voltavam para suas mesas para falar mal dos candidatos que não eram os seus. Ninguém atirava nem matava ninguém, convíviamos assim democraticamente, como deve ser.
João é uma atração à parte no próprio bar: o melhor/pior DJ do mundo. O repertório toca nosso coração (Caetano, Gil, Bethânia, Gal, Chico, Secos e Molhados, Os Novos Baianos, os bregões paraenses dos tempos de ouro e os velhos hits de trilhas de filmes dos anos 80. Quase nada de Beatles, apesar do nome. A interação entre João e o público é sensacional. Ele fica na vitrola, de óculos escuros e a cara amarrada. Observa o movimento e troca os discos ao sabor da emoção e do talento do público. De vez em quando, puxa o coro para cantar junto e faz comentários sobre os discos com os mais próximos. Cria uma empatia imediata, fala de datas, produção, episódios, curiosidades diversas, como uma enciclopédia viva.
No entanto, o desgraçado nunca acata pedidos. Nunca talvez seja exagero, mas quase nunca. E, quando atende, atende a hora que quer, como bem quer, sem dar muita confiança ao cliente e, não raro, até retalia o enxerimento e excesso de confiança de alguns. Já deu uns passa-foras homéricos. Está mais do que certo o João.
- Hoje o João está meio borocoxô.
Luís Capran, da minha gangue, disse com o copo de cerveja na mão, com indefectível bigodinho, tatuagens de tartarugas e sotaque e a ascendência holandesa-maranhense, que lhe conferem uma estampa loura e abusada. O meu doutor, que conhece tudo da vida das tartarugas marinhas, tragou fundo o cigarro, na beira da calçada, e apontou com os beiços, em direção ao meio do salão, um João mais contrito do que o normal.
De fato, a sequência estava melancólica, porém, animou logo em seguida. Foi quando o pessoal do Vídeo Show começou a melhorar a noite com a vibração medida das festas entre colegas de trabalho, gritinhos, rebolados e flertes entre si bem controlados.
Continuamos a beber como profissionais e olhar a presepada.
A vontade era de se enturmar com o pessoal. A gordinha continuava trabalhada na sensualidade e malícia. Saracoteava perto da gente. Eduardo, melhor amigo do meu irmão, arregalava os olhos enquanto soltava piadas maliciosas e observava as curvas perigosas da dançarina. De copo na mão, a gente se cutucava magnetizados pela musa redondinha e dançante. Até que alguém quebrou a harmonia no ambiente.
De repente, não mais que de repente, começaram a entoar:
- CIRO! CIRO! CIRO! CIRO!
Eu não acreditei!
Olhei para o retrato em branco e preto do João com Lula, em priscas eras, esfreguei os olhos e direcionei a visão para o, agora, João mais velho. Baixinho, camisa pra dentro da calça, brinquinho, cabelos grisalhos e o olhar esverdeado esperançoso e altivo de sempre.
Eu amo o João e o bar! Aquilo era um acinte! Aquilo era um absurdo! Louvar assim na cara de pau o político que abandonou o cenário eleitoral do segundo turno de 2018 e viajou para Paris! Deixou o Brasil nas mãos da extrema direita! Ah, isso não ia ficar assim, não!
Não, definitivamente, não.
No meu bar esquerdista preferido! Não e não!
Não com o João, o meu querido João. Mil vezes, não.
Do lado de cá, puxei um contra-grito-de-guerra:
Ciro! Traíra! Filho duma puta! Ciro! Traíra! Filho duma puta! Ciro! Traíra! Filho duma puta!
Meu irmão engrossou o canto. Luís Capran gargalhou e também soltou a voz. Eduardo, meio maluco, endossou. Sem demora, boa parte do bar, muito mais gente que o pessoal engomadinho do Video Show, já estava berrando em coro:
Ciro! Traíra! Filho duma puta! Ciro! Traíra! Filho duma puta! Ciro! Traíra! Filho duma puta!
O grupinho se assustou. Foram abafados. Se encolheram. Acho que ficaram com medo de levar um pau ou aquilo tudo descambar para uma briga generalizada. Logo em seguida saíram de fininho. Deixaram o salão vazio.
Nossa militância lacradora tinha vencido o terceiro turno de 2018 no The Beatles. Lá o Haddad tinha ganhado de lavada, pelo menos.
Do meu lado da trincheira, eu tripudiava:
- Ora, ora, Ciro! Ciro é o caralho! Traíra, safado, impostor! Quer dizer que é de esquerda, mas desmerece as conquistas históricas do PT! Não reconhece os avanços com os programas sociais que nunca na história desse país tiveram tanto investimento! Se alia com o PSDB pra fazer uma oposição fingida! Puxando saco de Bolsonaro! Assim não pode, assim não dá!
Eu era uma mistura de Lula na prisão com Fernando Henrique Cardoso, no apartamento da Avenida Foch, em Paris. Sem estar preso ou ter um imóvel de luxo na França. Apenas o dedo em riste e o discurso inflamado, já com o fígado embebido na cerveja.
Àquela altura, com a derrota de Haddad e a vitória acachapante de Jair Bolsonaro prestes a ocupar a Presidência da República no Brasil, estava mais do que comprovado que Ciro Gomes era um engodo, que acenava para eleitores de uma esquerda desiludida e órfã de Lula. Nada mais do que um liberalóide com tintas de social-democrata de meia tigela, agora magoado com a falta de apoio do PT para sua candidatura que não passou dos doze por cento nas intenções de voto. Eu avaliava:
- Bem feito pra esse otário!
Meus companheiros concordaram. Ora, ora. Era isso mesmo, um canalha, eles diziam.
Fui ter com o dono, o João:
- Olha, João, tem que proibir ciristas aqui.
Falei tirando uma graça. Ele abriu o sorriso, me olhou por cima dos óculos escuros e assentiu com a cabeça.
Por trás de mim, com discrição e certa timidez, um rapaz magrinho, muito parecido com o ator britânico Benedict Cumberbatch, exceto pelos cachinhos brasileiros no cabelo, aproximou-se:
- Ei, vocês que estavam falando aquele negócio do Ciro traíra, né?
Entrei no clima conspiratório e amigável do Sherlock da Netflix encaracolado. Respondi num quase sussurro:
- Sim, sim. Éramos nós.
- Sabe o que é? É que eles não estavam falando do Ciro Gomes.
Engoli em seco e soltei um:
- Como assim?
- Pois é. Eles estavam falando daquele cara ali.
Benedict ou Doutor Estranho do Pará, cujo nome real era Mário Valmont, apontou um sujeito lá fora. Alto, gorducho, uma cara pacificada dos homens bons. Desses sujeitos que não fazem mal a uma mosca. Dessas unanimidades que viram amigo de todo mundo, que são adorados por todos, que têm um carisma e magnetismo pessoal muito acima da média. Aqueles homens que as mulheres dizem sem nenhum constrangimento: ele é um fofo!
Valmont Cumberbatch continuou:
- Pois é. O Ciro dele é com Y. Ele é do Iphan, o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Organizou um evento pra essa galera toda, que veio de várias partes do Brasil. Estavam comemorando o sucesso da noite e apenas resolveram homenagear o organizador. Só por isso que estavam gritando o nome dele. Não tem nada a ver com o político, não.
Ri. De nervoso.
Luís, Andrey e Eduardo gargalharam também.
Remoí a culpa, mas logo chegou um dos caras do grupo do Video Show que, na verdade, era Iphan, para aliviar a tensão. Usava um corte de cabelo no estilo mullet e camisa florida. Com um semblante sério e engajado, o baixinho me encarava para dar detalhes do ilustre Cyro:
- Pois é, cara. O Cyro é muito gente boa. O outro Ciro é realmente um traíra. Grava aqui esse grito pra gente, porque eu estou realmente muito puto e fazendo isso em todas as capitais por onde passo. Gravamos.
Depois o próprio Cyro veio falar com a gente:
- Então, eu votei no Haddad e sou #EleNão!
Cyro sorriu, bateu nas nossas costas e seguiu para sua mesa, cercado de amigos.
Porra, o Cyro era gente fina mesmo.
Aos poucos o mal-estar ficou para trás. O pessoal do Iphan era, realmente, um grupo fabuloso, apesar das roupas sociais e dancinhas esquisitas.
Meu irmão resumiu:
- Miramos no Ciro certo e acertamos no Cyro errado.
Terminamos a noite com uns sambinhas e umas canções de protesto entoados a plenos pulmões na frente do bar, bem alegres. Me mantive longe, porém, simpático de copo na mão pra eles saberem que eu era um bárbaro civilizado.
Luís comandava a interseção da nossa turma com o grupo do Iphan, com a elegância de um diretor de bateria, a desenvoltura dominante de um mestre-sala e o rebolado de uma passista de escola de samba. Eduardo dançava desengonçado e fazia versões sem sentido das canções. Andrey estava feliz e contido, como somos, os da nossa família, enquanto o álcool não circulou ou começou a se dissipar.
O dia raiou e as garçonetes Baiana, Cida e cia começaram a retirar os pôsteres que adornam o estabelecimento. Os quadros de Cartola e Dona Zica, de John Lennon e Yoko Onu pelados e vários do quarteto inglês que empresta nome ao bar desceram da parede. O céu ficou lilás e a turma toda cantava, já quase rouca, um dos hinos de Chico Buarque contra a ditadura militar de 1964:
- Apesar de você, amanhã há de ser outro dia!
Era nossa redenção, eu acho.
Pagamos a conta e fomos embora, Luís, Andrey, Eduardo e eu. Desta vez, em novo coro e uma dancinha:
- Cyro! Cyro! Cyro! Cyro!
Antes de ir embora de vez, ainda pisquei pra gordinha sexy, que retribuiu e fez eu ler nos lábios dela:
- A-QUI É BOL-SO-NA-RO!
Fechei a cara, virei as costas e engoli o deboche de uma das vencedoras daquela eleição que jamais esqueceríamos. Em 2022 tem de novo, pensei.
Outas crônicas e contos você pode ler no blog do autor, o Daqui te Escrevo.
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