Ainda recordo o rosto gretado da pequena senhora ao meu lado querendo saber o porquê do meu pranto. Não era choro. Nunca fui de chorar, mas ao vê-lo chorei, discreto, mas chorei. O ar me faltou no meio da multidão, me escorei na parede mais próxima e o vi passar impune de óculos escuros, ouro no dente, o peito de galo velho à mostra pelo botão aberto da camisa surrada. Tinha a ginga das serpentes, o pisar dos gatos e a desfaçatez dos vira-latas. Já faz tanto tempo.
Mas, bem antes, teve a primeira vez, que a gente nunca esquece.
Na tarde clara daquele agosto perdido fui procurá-lo. Desci do ônibus sucateado naquela poeira amarela. Incrível como o pó me cobriu inteiro de imediato e sinto ainda hoje os farelos de terra do lado de dentro da minha pálpebra. Debaixo de sol alto, caminhei entre as poucas casas daquela área quase deserta na época. Na primeira mercearia perguntei por ele. Por trás de um bigode largo e sujo de nicotina, o velho resmungou a direção apontando com os beiços.
Cheguei com cuidado na casa de madeira. Dois cômodos apenas. Um cão da cor do chão do lugar estava amarrado por uma corda fina ao pé da porta entreaberta. Me olhou com desdém, o bicho. Não se daria ao trabalho de latir para um fiapo de gente como eu.
Depois que minha mãe morreu, me alertaram para não o procurar, para não desobedecer ao que ela vivia repetindo. Mas há certas coisas que são feitas não porque se quer ou se decide fazê-las, mas porque são exigências da vida, demandas do tempo, necessidades além da compreensão minúscula que temos sobre nós mesmos e das coisas que nos cercam.
Estava agora olhando pela fresta. O homem que eu procurava dormia na rede vermelho sangue. Enxerguei um único pé com joanetes, marcas de calos e unhas compridas e imundas. Olhei para os meus também sujos na sandália. Deu para ver um rádio muito antigo, a parte de uma mesa de madeira de quatro lugares, a caneca de alumínio e uma garrafa no chão, vazia. Ouvi o bufar de quem está apartado no mundo dos sonhos, dos que nada têm com o que se preocupar.
Pensei em voltar. Outra hora. Outro dia. Nunca mais, quem sabe. A ideia era péssima. Olhei o cachorro que me retribuiu o olhar e levantou as orelhas. Dentro do casebre, o homem se revolveu no seu modesto aconchego. Dei um passo atrás. Não deu para desistir, ele se levantou e veio até a porta.
- O que é moleque?, disse.
Gaguejei quem estava procurando, tirando um fôlego de coragem não sei de onde.
- Sou eu mesmo. - Ele devolveu.
- Sou filho da Lourdes. – Revelei quase tremendo.
- E daí? Já sei que ela morreu.
Um nó se fez na minha goela e ainda assim eu consegui perguntar:
- É verdade que o senhor é meu pai?
Os olhos do homem secaram com a pergunta. Ele me puxou pela camisa para dentro da casa e começou o que hoje eu chamo de lição didática para matar esperanças. Com um cinto de couro cru e deu a primeira lapada por cima do meu rosto. Não entendi a reação, nem deu tempo de pensar melhor com os movimentos seguintes: me agarrou pelos cabelos e chutou minhas pernas, para em sequência me empurrar até um canto vazio. Por instinto, expus as costas e escondi minha cabeça com as mãos entre os joelhos. Não sentia dor alguma, somente o barulho das cinturadas.
Quando ele cansou, me segurou de novo, agora pelo pescoço.
- Se voltar, te mato.
Sai andando desnorteado. Passei pela mercearia e o velho riu na minha direção, como quem zomba de uma queda.
Prometi para mim que voltaria. Não para morrer ou ser morto, como ele alertara.
Guardei o momento a vida inteira tão bem guardado que nem uma filmagem seria tão fiel à nitidez das imagens em minha cabeça. Minha raiva foi moldada e embalada a vácuo para não perecer. Só entrei em pânico quando tive a oportunidade de responder aos meus anseios e não aproveitei.
Agora ele estava ali, porém, bem pertinho, com as voltas que o mundo dá. Não mais diante de um menino. Desacordado pela cachaça, ele não sabia que ao seu redor havia uma fera gerada no ódio fervido e apurado pela disciplina cega de quem devota todos os dias rezando por aquele reencontro com mais fervor do que os que oram para Deus na hora de morrer.
Sentei à mesa ao lado do bêbado. Olhei ao redor. A atendente veio perguntar se eu queria cerveja. Pedi uma água mineral. Não tinha. Traga uma coca. Voltou com o xarope. Quente, um chá. Despejei o líquido no copo. Ao redor, um bilhar, engradados, latas de sardinha, copos sujos. Um gato negro dormia no chão de cimentado pintado com vermelhão. Azar.
Na frente do bar duas putas gordas riam alto junto com três homens sem camisa. Um com uma barriga indecente de tão grande, outro muito magro e com uma cicatriz no peito e um terceiro muito negro com olhos vermelhos. Me olharam de soslaio, despejando desconfiança, ameaçadores.
Segurei a pistola sem medo algum de alguém perceber. Olhei meu alvo ao lado. Os cabelos acinzentados eram um emaranhado de fios já expondo o começo de uma careca. Os olhos estavam fechados, guardados por bolsas inchadas ao redor. Nem sinal das cuspidas de fogo no dia da minha esquecida visita. A cabeça pendente, o queixo apoiado no peito. Da boca entreaberta pendia um fio de baba, que deixou uma mancha redonda na camisa puída e encardida. Os pés mal calçados ainda tinham as deformidades e calos e estavam arroxeados pela má circulação. As mãos enormes e rudes, sem mostrar quem ele foi ou deixou de ser, no entanto. Nem cobra, nem gato, nem cachorro vira-lata. Me lembrava agora um leão-marinho encalhado à espera da morte na beira da praia.
Olhei as putas, os homens, o dono do bar dormitando no balcão, a atendente hipnotizada pelo faroeste exibido na madrugada, a imundície do ambiente e meu pai desacordado, imerso talvez no mesmo nada de quando o encontrei pela primeira vez. Ele moveu os lábios grunhindo. Respirei fundo, deixei o pagamento do refrigerante e levantei.
Passei pelas mulheres na frente, que continuavam rindo. Os homens fecharam a cara ao me perceber de pé. Acendi um cigarro e olhei o letreiro mal feito: Vingança. Bom nome.
Decidi caminhar na Pedreira que, naquele ano, ainda era do samba e das matintas pereras. Queria estar na rua na hora em que o sol aparecesse e o silêncio das primeiras horas se impusesse.
Anderson Araújo é escritor e jornalista da equipe do DOL. Ele escreve às sextas-feiras.
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