Poucos personagens de televisão tem no Brasil a penetração popular alcançada por Chaves, o menino humilde interpretado por um adulto, numa comédia de estúdio de roteiro simples e um inegável humor tosco.
Quando importado do México, em 1984, o seriado já alcançara sucesso absoluto por toda a América Central e Latina. O Brasil chegou bastante atrasado ao fenômeno. Quando o personagem foi apresentado ao público brasileiro, a série já não era produzida. Os 312 episódios de "El Chavo", título original de "Chaves", foram exibidos na TV mexicana entre 1973 e 1980.
Quem conduziu a longeva série foi Roberto Gómez Bolaños. Além de ser o ator adulto que se vestia de menino, ele produziu, escreveu e dirigiu suas aventuras. Claro que a vida dele daria um livro, e o volume chega agora ao Brasil, lançado pela editora mineira Estética Torta.
"Sem Querer Querendo - Memórias" tem no título um dos bordões característicos do personagem. De certa forma, pode servir como uma boa definição para muitas passagens da vida de Bolaños. São muitas coincidências felizes em sua trajetória, desde largar os estudos de engenharia e tentar carreira como redator publicitário até tornar-se um ídolo internacional, que tinha o apelido Chespirito.
A ideia do autor nesse volume, lançado originalmente em 2006, não foi contar uma biografia linear e completa, construída com esmerada pesquisa e conferência rígida dos fatos. Trata-se de uma compilação de memórias afetivas, casos que Bolaños vai contando e assim, aos poucos, expõe os altos e baixos de sua carreira.
Como os roteiros que escreveu para "Chaves", seu texto é muito simples, mas envolvente. O estilo coloquial pode dar a impressão de que ele está diante do leitor, aninhado numa poltrona enquanto conta episódios que vem aleatoriamente à cabeça.
Esse é um verdadeiro trunfo dessa biografia, porque o público de "Chaves" nunca foi composto por pessoas de perfil mais intelectualizado. A atração é popular até a medula, assim como "Chapolin", seu seriado "irmão". Chapolin Colorado, também interpretado por Bolaños, é um super-herói atrapalhado que também carrega um bordão, "Não contavam com minha astúcia". E astúcia realmente falta ao herói de uniforme vermelho e antenas.
O jeito descompromissado na narrativa do livro cria uma agradável leitura mesmo para quem não é tão fanático pelo seriado. Claro que os fãs de carteirinha vão aproveitar muito mais algumas revelações sobre Bolaños, que vão remeter a episódios clássicos e personagens bem marcantes e queridos da trupe do menino, como Kiko, Seu Madruga, Chiquinha e Professor Girafales.
É compreensível que o autor dedique boa parte da narrativa a falar de outros trabalhos como ator de humor. Chespirito tem uma coleção de tipos interessantes. Mesmo que não criasse o irresistível Chaves, teria um lugar reservado na história do humor televisivo.
O livro é também uma ótima introdução para quem deseja saber como a televisão funciona do outro lado da câmera. "Chaves" foi um produto da Televisa, um conglomerado de comunicação mexicano que impôs atrações em praticamente toda a América Latina.
Essa espécie de Globo mexicana é reconhecida como um gigante do segmento. Mesmo sem preocupação evidente de Bolaños em retratar esses bastidores de produção, é possível conhecer muito sobre a maneira como a TV mexicana elabora suas atrações para fisgar audiência.
Bolaños morreu em 2014, de infarto, aos 85 anos. Seus relatos dos últimos períodos de vida mostram alguém muito satisfeito com o sucesso alcançado, tranquilo em relação a idolatria de várias gerações e sem nenhuma vergonha de resignar-se diante da força de seu personagem mais marcante.
Enquanto em alguns países latinos "Chaves" é fenômeno de uma ou duas gerações, entre o público brasileiro o universo de seus seguidores vai de crianças a cinquentões. Fazem parte dessas fileiras aqueles que realmente morrem de rir com a série e aqueles que procuram se esconder debaixo de um verniz mais cult, tratando "Chaves" como um fenômeno midiático, o que realmente é.
O livro de memórias de Bolaños, para qualquer um desses grupos, é uma agradável leitura. Deve lançar muitos leitores a uma jornada irresistível de nostalgia.
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