Um filme que trata de uma das maiores feridas sociais do Brasil, o trabalho escravo, “Pureza”, do diretor Renato Barbieri, chegou às telas de cinema de todo Brasil. Inspirado em uma história real e estrelado por Dira Paes, no papel da mulher que transformou a busca pelo filho em uma luta por justiça, o filme foi quase todo rodado no Pará e traz outros artistas paraenses no elenco.
Vencedor de 28 prêmios nacionais e internacionais, em 18 países, “Pureza” é um longa de ficção, mas que reconstrói uma realidade ainda bastante presente, em especial na Amazônia. Chegar ao equilíbrio na linguagem sem perder a força da narrativa não foi simples. Cineasta com 39 anos de carreira, Renato Barbieri conta que levou 15 anos para tirar a história do papel e dar vida à Pureza, a protagonista, criada em Bacabal, no Maranhão - que a cenografia recriou em Marabá, no sudeste paraense. Para tanto, trouxe um pouco do seu olhar de documentarista e se valeu de muita pesquisa.
A verdadeira Pureza desafiou todos os perigos, durante três anos, para encontrar seu filho Abel (no filme vivido por Matheus Abreu), e se tornou um símbolo do combate ao trabalho escravo contemporâneo. Sua trajetória de luta foi reconhecida internacionalmente, tanto que em 1997 ela recebeu, em Londres, o Prêmio Antiescravidão oferecido pela organização não-governamental britânica Anti-Slavery International, a mais antiga organização abolicionista em atividade.
De fazenda em fazenda, Pureza conheceu de perto o drama dos peões, tornando-se amiga e confidente de muitos trabalhadores. Conheceu por dentro o sistema pelo qual os empregadores confiscavam documentos de identidade dos empregados e tornavam-nos totalmente dependentes dos encarregados para obter roupa, comida e produtos básicos. Ouviu relatos dramáticos de trabalhadores que poderiam ser mortos se tentassem se rebelar ou fugir.
Barbieri conta que Dira Paes surgiu instantaneamente em sua mente para o papel. Ele conhecia a atriz desde 2003, quando trabalhou com ela no documentário “Na corda do Círio”. “Ela veio na minha tela mental como uma força indiscutível. Eu moro em Brasília e fui ao Rio apresentar o projeto para ela. Entreguei o roteiro em mãos a ela, que entendeu a história de cara e comprou a ideia. A Dira ficou muito feliz também de poder fazer o filme, está ganhando diversos prêmios, foram seis no total de melhor interpretação, inclusive em Seattle, nos Estados Unidos, que é o maior festival de cinema latino-americano. É um prêmio que também muito nos honra. É uma atriz de cinema, ela até está dirigindo agora, acabou de dirigir um filme que ainda não lançou e que fez com o Pablo [Baião, diretor de fotografia], o marido dela, durante a pandemia”, enaltece.
Não só por Dira, que o diretor cita como “uma grande estrela brasileira, assumidamente paraense, sempre valorizando as coisas do Pará”, “Pureza” tem, em sua opinião, um forte DNA paraense. “Das sete semanas de filmagem, a gente filmou seis em Marabá e uma em Brasília e fizemos basicamente dois meses de pré-produção em Marabá”, diz ele, que incluiu no elenco atores de Belém, Brasília, Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul.
“O Brasil nunca viveu sem escravidão”
O diretor ressalta que tem uma relação intensa com o Pará. “Os lugares que eu mais filmei no mundo foram o Pará e o Maranhão. É uma conexão que ainda não decifrei muito bem. Fiz agora o ‘Ventos que sopram - Pará’, no canal Curta. É um dossiê, vamos dizer assim, uma antologia da música contemporânea e de raiz. Filmei ‘Servidão’, que eu lançarei depois de ‘Pureza’, que é um documentário sobre trabalho escravo também no Brasil, aqui no Pará, além de outros lugares”, enumera.
Por toda essa relação com o Pará é que trazer “Pureza” para os cinemas locais – Belém recebeu o longa em abril, em uma pré-estreia com a presença da equipe – se tornou importante para Renato Barbieri. “A gente sabe que o Pará tem também muito trabalho escravo. Ele anda de mãos dadas com crime ambiental na Amazônia”, lembra. Mas pondera: “O Brasil nunca viveu sem escravidão. Costumo dizer que a escravidão contemporânea começou no dia 14 de maio de 1888, no dia seguinte à abolição. A provocação que a gente faz lançando ‘Pureza’ é que a nossa geração, essa de quem está vivo, tem que assumir para si essa missão de falar sobre isso”, pontua.
E o cineasta vai além, e reflete sobre a herança deixada pela escravidão dos negros, que se perpetua na pobreza extrema e vulnerabilidade que levam aos casos de trabalhadores escravizados hoje. “Se você vê um homem preto ou uma mulher preta na rua é herança da escravidão. A família dele foi desestruturada lá atrás e não conseguiu estudar. Não foram desenvolvidas políticas públicas para incluir essas pessoas. A escravidão tem uma cor: 90% é formada de pessoas pretas. A maioria da população carcerária é preta, porque é uma herança da escravidão. E já está mais do que na hora do Brasil reparar os males de 350 anos de escravidão clássica, legalizada, e 133 anos de escravidão ilegal, criminosa”, critica.
Veja o trailer:
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