Uma mulher bem diferente da estrela de grandes shows, programas de TV, grandes públicos e figurinos suntuosos - que se transforma numa assassina em série para acertar as contas com o destino, sem temor nem piedade. Assim é a Gaby Amarantos com que o espectador vai se deparar em “Serial Kelly”, longa do alagoano René Guerra que ela protagoniza e que chega nesta quinta-feira aos cinemas brasileiros, inclusive nas salas de Belém.
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O sotaque também é bem diferente, já que Kellyane, a personagem que Gaby encarna, é nordestina, uma cantora de forró eletrônico que viaja pelo interior do Nordeste, deixando mortes por onde passa. Diretor e roteirista do longa, ao lado de Marcelo Caetano, Guerra diz que começando a construir essa mulher, seu rosto ainda “era uma incógnita”.
“Eu só sabia que trabalharia com uma atriz que soubesse cantar, ou com uma cantora que soubesse atuar. A escolha dependia muito disso. Mas quando encontrei com a Gaby, olhei no olho dela, e tem a presença de onde veio, de onde está, para onde vai, e para onde quer ir”, diz Guerra, sobre a força que precisava para a personagem. “E a Gaby tem na performance dela muito de teatralidade, ela é uma verdadeira aparelhagem viva (risos)”, define.
Ele também justifica a escolha numa justaposição necessária entre as regiões Norte e Nordeste, em contraponto ao Centro-Sul, que historicamente ditou as regras da produção cultural. E defende: se o cenário de “Serial Kelly” é do interior das Alagoas, há muito do Norte de Gaby sintonizado no filme, a ponto de dizer que Kelly tem uma identidade “nordestista”. “Foi muito importante a mistura do sotaque que ela construiu, mas ao mesmo tempo de uma estética do Pará, do Norte, que a gente desconstruiu e reconstruiu no processo do filme. Eu tenho certeza que o Pará está também no filme, tanto na figura dela quanto musicalmente. E o Nordeste está nessa paisagem também, nesse atravessamento”.
A visualidade do filme e especialmente a música que embala a história passam por isso. Vão de Reginaldo Rossi a uma versão de “Psycho Killer”, do Talking Heads, que na mão de Gaby vira a “Rapariga Cascavel”. Uma porção de exagero que, para Guerra está no DNA do cinema latino-americano e que ele quis resgatar. “No cinema tem uma fala que menos é mais. No Nordeste de Lampião, menos é morte. A gente é barroco! A prefere acreditar no imaginário, porque é uma forma de sobreviver também”.
Daí para diante, o diretor se derrama em elogios para a performance de Gaby, que ele diz ter mergulhado profundamente – e corajosamente – na construção do papel, abdicando inclusive de turnês e outros compromissos para se dedicar aos ensaios.
“Gaby Amarantos é uma das pessoas mais maravilhosas de se trabalhar porque ela mergulha profundamente nas coisas, além de ser extremamente disciplinada, de ser uma mulher com personalidade, que cada vez mais tem atravessamentos que são discursos que a gente está vendo aí, mas há cinco anos era tudo muito novo e já estava nela, a questão da negritude, da autoestima da mulher negra, o machismo, a igualdade salarial”, diz.
O fruto da parceria de respeito e confiança é perceptível, diz ele. “Nenhum ator em nenhum filme faz nada que não queria. As cenas estavam postas, agora o nosso diálogo era baseado na confiança e nesse pacto de troca”.
Segundo Guerra, a cantora contribuiu muito para a personagem, que passa adiante nesta espécie de road movie com uma fúria interna que se coloca como força de resistência diante de um mundo moldado por homens. É assim que ela surge, já nas primeiras cenas, displicentemente comendo um churrasquinho, depois de fazer sua primeira vítima, sobre quem dá de ombros ao ser questionada pela delegada Fabíola, vivida por Paula Cohen.
“A Kelly, ela transborda, ela é instinto puro, é uma personagem que eu posso considerar amoral, e é assim para se defender dessa violência que atinge o corpo feminino. Para algumas pessoas ela é uma vilã, para outras ela é heroína”, avisa o diretor.
E é quando a chave gira. Nesse tom de comédia meio ácida, em que situações absurdas vão se enfileirando na vida de Kelly. Guerra diz que é possível tudo, menos rir dela. Por baixo da superfície, como nas águas turvas em que ela deixa o primeiro cadáver, o diretor diz que percebeu dentro da personagem uma solidão enorme, que só se transforma nos encontros dela com outras mulheres. “Acho que esse machismo estrutural não tem gênero, mas no caso do filme existe uma sororidade, que essas mulheres compreendem umas às outras”.
“A gente luta pela liberdade de expressão dentro da diversidade. É muito fácil a oposição das pessoas que não querem que a gente seja livre, porque eles têm uma voz única, eles não contestam. Mas quem é pró-diversidade, é também pró-opinião do outro. O filme não é moralista, ele não quer falar sobre isso, mas fala. Tem uma fala [da Fabíola] que diz que ela [Kelly] é só uma mulher. Ela não está diminuindo a Kelly, ela está dizendo que esse aparato todo é machista. Ela diz por que tantas armas contra uma mulher cuja única arma que possui é a voz?”
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