Não, não é um texto sobre fofoca, mas poderia ser. Não sei se já viram o teaser do filme "Barbie", a ser lançado em 2023. No anúncio, a boneca mais famosa do mundo faz uma paródia/pastiche do clássico "2001 - uma odisseia no espaço" (1968), do diretor norte-americano Stanley Kubrick.
As reações foram as mais diversas e revelam muito do espírito cultural contemporâneo.
Sites e comentadores disseram ser "épico", "fantástico", "genial", outros viram "homenagem", "referência", "imitação".
Mas não paremos por aí. Alguns foram além do vídeo e comentaram que acharam o filme de Kubrick chato e, para não dizer que se está sem embasamento, incluíram "Cidadão Kane" (1941), um filme de um tal de Orson Wells, na mesma categoria.
A boneca gigante, agora humana na figura de Margot Robbie, que surge no filme é a síntese daquilo que as culturas pop e pós-moderna, fazem de "melhor".
For anyone else who was looking for a side-by-side comparison of the Barbie trailer with 2001: A Space Odyssey, here ya go! pic.twitter.com/CzoKzoFvpH
— Matthew Gaydos (@MatthewGaydos) December 16, 2022
É claro que pode parecer apenas uma brincadeira com um clássico, mas, não nos enganemos, há uma estratégia nesse procedimento.
Não sejamos "apocalípticos", nem "integrados". A cultura contemporânea tem como uma das características esse reaproveitamento de suas próprias fontes, imagens, conteúdos.
Ja escrevi sobre isso anteriormente ("Lady Gaga, uma aula do pastiche") e esse fenômeno se repete aqui.
Esse reaproveitamento se dá como citação de conteúdos presentes (essa é a palavra) em nosso imaginário, atualizando-os, citandos-os, necessariamente, presentificando-os (aí está a justificativa daquela palavra).
Esses procedimentos são inerentes a essa cultura, cada vez mais imagética, cada vez mais diante de nossos olhos e cada vez mais, estruturalmente (palavra demasiadamente clássica), fugaz.
Parte dessa fugacidade tende a criar uma percepção do mundo atual que se vê sempre em busca de um obsoletismo da imagem e, ao mesmo tempo, que busca, no palácio das memórias da literatura, da televisão e do cinema do Século 20 algo em que, quando necessário, se agarrar.
É uma nostalgia às avessas. Ao mesmo tempo que rememora um passado exemplar (um clássico) faz dele uma montagem reconhecível, como troça e como promoção. Não o renega, pelo contrário, se abraça a ele, como Andy Warhol "abraça" Marilyn.
Daí compreendermos (e, sejamos sinceros, bote compreensão nisso) que Kubrick e Wells, para essa nova forma de percepção e consumo, pareçam chatos. E entendermos que as cores de "Barbie", que vão cintilar, explodir a tela ano que vem, pareçam tão esperadas.
O próprio twitter oficial que representa Kubrick, compreendendo o processo produtivo atual, afirmou, na frase clássica, "dizem que a imitação é a forma mais sincera de homenagem. Até a Barbie é fã do Kubrick".
Não façamos, sobre o teaser, uma grita de puristas (apocalípticos), não adiantará; nem brademos a sua genialidade (integrados), será inútil.
Os dois polos, na definição de Dwight Macdonald, da inventividade do highbrow (alta cultura) e da diluição do lowbrow (cultura de massa) já, há muito, se encontram, se entrecruzam, se relacionam.
A relação entre Barbie e Kubrick também pode ser compreendida através de uma expressão atual, "shippar", até bem pouco tempo uma moda (nada mais fugaz) nas redes sociais.
A expressão derivaria da palavra "relationship" (relacionamento) que era utilizada por fazedores de "fan fiction", narrativas ficcionais feitas por fãs que fantasiavam e desejavam nessas histórias relacionamentos, muitas vezes improváveis, entre personagens, por exemplo, do cinema, já conhecidos.
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A expressão "shippar" é o anseio ou a criação de uniões, prováveis ou não, e pelas quais se torce, se vibra.
O cortejar da boneca (do filme) sobre o diretor (seu cinema), poderia ser pensado desse modo. Ele cria um tipo de relação aparentemente incomum, mas ela é resolvida (dissolvida?) pelas estratégias do mercado atual das imagens.
Não seria à toa que os elogios a essa fusão highbrow / lowbrow são mais efusivos que suas críticas.
Poderia parecer improvável que "2001" se cruzasse com um filme sobre uma boneca. Mas olhemos além dos sintomas e talvez percebamos que isso faz parte de nossa odisseia da ficção contemporânea. É, se quisermos, um epifenômeno de nossa condição.
O monólito insondável do filme de 1968, que surge em vários lugares e que provoca as mais diversas indagações, pode agora ser, sem problema, uma loira totalmente sondável, em traje de praia.
Pegue uma pipoca, reconheça a referência, sorria ou se enraiveça com ela. Não importa. O teaser anuncia que a boneca e o diretor não são uma "fan fiction". Não há mais pedras no caminho.
Para alguns, Kubrick está se revirando no túmulo; para outros, entre ele e Barbie há uma relação.
Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, "Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia", ed.ufpa.
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