Jogada em um canal de água, em uma mata, de dentro de um carro, ou sob a marquise de um prédio. Jogada no dia a dia das relações cotidianas de violência, na futilidade dos barões regionais, ou na mesa de pôquer de um cassino. Tudo em plena Belém do Pará. “O que haverá de ficção no relato?”. Não importa. A Belhell, de Edyr Augusto, não quer ser apenas identificada, ela quer ser exibida, como cartas à mesa, com seus naipes fatais.
O escritor paraense retorna, nesse romance, com plenitude, à temática que o consagrou. A capital de uma região, que ainda se imagina apenas violentada em sua natureza idílica, ressurge em sua imagem aterrorizante, estrebuchando, com a garganta cortada e com um tiro na têmpora, implorando, mas sem poder se salvar.
“Atira, caralho. Não faça isso, homem. Tenho mulher e filhos pra criar. Atira, moleque! Ou vai gelar agora, hein. Pelo amor de Deus, homem, faz isso, não! Três tiros secos e Gio começou a vomitar”.
Gio, também grafado como Gil, no romance, um nome recorrente em outros livros do escritor, é um garoto pobre que é doado pela mãe a um comerciante. Ele se tornará um dos personagens símbolos da decadência existencial na cidade. Criado no Ver-o-Peso, ele logo saberia que a cidade vai além do bucolismo imaginal da feira à beira do rio, mergulhando em uma corrupção da qual não deseja sair.
Ninguém, na verdade, deseja sair. Não existem arrependimentos na literatura de Augusto. Seus personagens submergem em tudo que parece excitante, perigoso e pútrido. Os bairros da Campina e Comércio são seu lamaçal diário nos quais, como urubus, se deleitam sem escolher o que devorar.
Paulo, apaixonado por Paula desde da adolescência, sonhava ser policial; Clayton era um médico promissor; Paula queria sair da pobreza a qualquer custo. Todos ascendem. Mas essa ascensão sempre os impele à existência infernal da cidade. Belhell.
Roubo de carros, corrupção política e policial, assassinatos, prostituição e jogos. Temas que já surgiriam em outros livros do autor, como “Selva concreta” (2012) e “Pssica” (2015), fazem parte dos caminhos lúgubres por onde terão que se esgueirar e adentrar. Não se negam. Não possuem grandes crises existenciais para alcançar seus objetivos. Como jogadores, não devem titubear. Jogam-se, jogam e são jogados.
No Cassino Royal, do médico Clayton, a elite degenerada (os barões) arrisca seus milhões em busca de algo. Há o dinheiro, mas há a excitação do jogo, o desafiar a cada instante. Atravessam a madrugada jogando, e o jogo os atravessa, impiedosamente. Sem titubear.
“Belhell” repete, em sua capa, o mesmo motivo do primeiro livro de Edyr Augusto, “Os Éguas” (1998). Se, em seu romance de estreia, temos a imagem de um prédio que parece arruinado por uma época decadente, nesse, temos uma das imagens icônicas da cidade, as imediações do Ver-o-Peso.
Mas, nessa capa, esse ambiente conota o espírito da urbe que a literatura busca, novamente, representar. Seu cartão postal, em fundo preto e mergulhado em um tom lilás, não escapa da metaforização de uma existência vil, atroz e horrenda. Gil, enraivecido, resolve por lá passar, “táí, vou até a beira do Ver-o-Peso. Aquilo tem cheiro de merda...”
Nessa imagem da cidade, na qual vidas parecem naipes a serem descartados, a ideia de que “o ser humano é cheio de defeitos, faz tudo certinho, mas pode contar que alguma coisa está fora do lugar”, prevalece. Na abertura desses casulos individuais de cada personagem, a cidade se abre, e lá, está Hades, em uma esquina escura, para acolher suas almas.
Fora do lugar. O serial killer, que corta, com abjeta destreza e crueldade, a garganta dos moradores de rua do centro de Belém, acredita que suas vítimas assim devem ser encaradas, como outsiders, dispensáveis. Ele, em sua psicopatia, sempre, após cometer os assassinatos, retorna para aquilo que julga seu lugar. O desviante é o outro; o psicopata é sempre, nas aparências da cidade, insuspeito.
Também Paula parece inofensiva. Lindamente juvenil, com seus ardis, ela enlouquece Paulo, Gil e Clayton. Mas Paula, talvez, seja apenas a rodada de uma partida que não parece ter fim, nas pulsões irrefreáveis dos personagens, da cidade, do desejar e do morrer.
Sim, o binômio freudiano, desejo e morte, está aqui. Está especialmente metaforizado na imagem do jogo de cartas que mimetiza a vida. Sem poder ter certeza da próxima jogada, todos, de algum modo, se arriscam. Jogam-se, jogam e são jogados. O jogo é, como a narrativa, realidade e fantasia. “O que haverá de ficção no relato?”. Não importa.
Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia”, ed. ufpa.
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