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Vicente Cecim e o cinema da ação transcendente

Leia o texto especial do professor e pesquisador Relivaldo Pinho para o DOL.

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Imagem ilustrativa da notícia Vicente Cecim e o cinema da ação transcendente camera Divulgação

Vicente Cecim foi um dos artistas que percebiam a possibilidade estética como mais que uma fruição obscena de obviedades. Nas suas produções cinematográficas da década de 1970, Cecim revelaria todo o inconformismo diante do mundo, atitude característica de artistas que, realmente, se queriam – e Cecim o foi; o é – autores.

Seu cinema, de caráter experimental, seguia a ideia de fazedores de filmes, cineastas com câmeras Super 8, que pretendiam não apenas filmar o que viam, mas inscrever no olho mecânico um mundo humanizado.

Inscrever sobre o que se vê. Hoje isso pode parecer até utópico, mas para os herdeiros dos movimentos que surgiram no pós-II Guerra, isso se tornaria um imperativo.

Hoje, a originalidade, a não literalidade, é ofensiva a ressentimentos inconfessáveis.

No seu período de maior produção, ele realizou “Matadouro” (1975), “Permanência” (1976), “Sombras” (1977), “Malditos mendigos”, (1978) e “Rumores” (1979).

“Sombras”, por exemplo, tinha como tema o abandono dos idosos e como cenário o Asilo Dom Macedo Costa. “Malditos mendigos” mostrava o abandono das pessoas nas ruas belenenses, sempre tendo uma profunda representação metafórica como técnica angular.

“Os filmes deveriam compor uma trilogia que culminaria com a filmagem dos doentes mentais do Hospício Juliano Moreira. O terceiro filme não se realizou, mas a intenção de Cecim ficaria registrada em um manifesto escrito por ele nesse período, intitulado “Sombras & Malditos mendigos: um novo lance de dados” (Relivaldo Pinho, “Amazônia, cidade e cinema”, 2012).

Deixemos o espirito daquela época atravessar, como um médium-de-reflexão, o pensamento sobre a imagem, o cinema, o depoimento do próprio autor:

“Comparando o “Malditos mendigos” hoje em dia, através do Véu da Memória, com o “Sombras”, acho que os dois foram os filmes que realizaram ao máximo que me foi possível o que eu me propunha: olhar sondando as entranhas de diversas conformações da vida - com um olho físico, social, histórico, mas o outro já indo para o metafísico, o trans-temporal, o trans-histórico. Para mim, naquele tempo, o Cinema era isso - e continua sendo: é a sua essência esse olhar simultâneo com esses dois olhos interrogativos”, diria o artista.

“Quando fiz o “Sombras” – continuaria Cecim - creio que estava especialmente muito tocado pelo sentimento primitivo de que o Cinema seria sempre melhor quanto mais se aproximasse da sua pré-história: em vez de um espetáculo superficial ilusório para multidões iludidas, um retornar profundo ao antigo ritual pré-Lumiére/Meliés, que se chamava Sombra Chinesa: um regredir à Caverna de Platão, uma forma de decifrar a epiderme do Real com um Olho sobretudo ontológico – isso que mais recentemente se viu nos filmes de Tarkovski, se vê nos de Sokurov, tão presente no cinema zen de Ozu, no Antonioni sobretudo da trilogia dos encantados “A aventura”, “A noite”, “O eclipse”: era desse Olho Ontológico que falava Bresson - quando insistia que havia uma abissal diferença entre o que se entende de um modo geral por Cinema e o que ele, Bresson, chamava de Cinematógrafo” (Sombras chinesas. In: Relivaldo Pinho. “Cinema na Amazônia: textos sobre exibição, produção e filmes”, 2004.).

Quando o cineasta e escritor dizia querer “despertar do torpor rotineiro, onde os olhos abertos não sabem ver: é uma noite lúcida, teatro armado para a consciência entrar em ação”, ele nos dá a intenção desses autores que desenvolviam a estética como modo de diminuir o olho acostumado com a cidade, com a existência e, ao mesmo tempo, para isso, ser, em sua representação, transcendente.

Mas essa atitude não se faz e não se consegue, evidentemente, de modo gratuito. É preciso dedicação, desafio, experimentação e coragem. Além de suas referências estéticas e cinematográficas, Cecim “rasgou”, inverteu, o Manual de sua câmera Minolta Autopak Kodak, como modo de obter uma subversão técnica, repudiando a perfeição fílmica recomendada aos turistas.

“Sombras” é, sem dúvida, seu melhor exemplo dessa subversão estética, desse olhar de espanto, dessa humanização do mundo. Não é à toa que Acyr Castro, o maior crítico de cinema do período, considera a melhor realização daquilo que se convencionou chamar, na época, de Geração Super 8.

Por volta de 2004, quando fiz parte de um projeto sobre o cinema na Amazônia, Cecim foi um dos participantes e, na oportunidade, resolvemos transformar parte de seus filmes para DVD, para que eles não se perdessem. Hoje, felizmente, parte desses filmes está na internet desejando serem vistos, estudados, discutidos.

Seus trabalhos fílmicos são exemplos de subversão da técnica, do olhar, do desejo. Inversão da normalidade da vida e da técnica, incômodo do eu, do mundo, vertigem que desencadeia a ação, luz que quer mostrar as coisas do mundo.

“Eu lá queria saber da luz multinacional e mecânica e artificial da Kodak; eu queria era descobrir a luz da vida, das coisas do mundo ao meu redor – que Paracelso, o famoso Alquimista – assegura ser emitida do interior de todas as coisas, suas luzes próprias, mas que não percebemos porque a luz exterior do sol tudo nos oculta desses cintilares de vaga-lume, de fogos fátuos”, dizia o cineasta.

A alquimia de Cecim revelaria as luzes próprias das coisas e o inconformismo diante do mundo, atitudes características de artistas que, realmente, se queriam – e Cecim o foi; o é – autores.

Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia”, ed. ufpa.

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