
As batidas arrepiam junto a uma letra que carrega dor logo na primeira das sete faixas do EP “1999”, da rapper paraense Nic Dias. Em “Interlúdio I”, o choro de Nic vem para justificar, na sequência, o ódio e a revolta da música “Remédio pra Racista é Bala”, já lançada como single com direito a videoclipe. O EP completo chega à meia-noite desta sexta-feira a todas as plataformas digitais, e no YouTube, a partir de meio-dia.
“É muito forte porque sou eu falando para o mundo sobre como me sinto. Fala um pouco da minha mãe, da vida dela. É o primeiro choque que quero que as pessoas tenham ao se deparar com o EP. Choque porque não são coisas bonitas de serem ouvidas, por ser doloroso. É muito fácil falar de coisas bonitas, mas existe um outro lado que não deixa de ter beleza. É sobre humanizar pessoas negras porque somos desumanizados demais, na escola, na rua, pela polícia...”, lamenta a rapper, que no ano passado sobreviveu a uma tentativa de homicídio, quando voltava para casa depois do trabalho.
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“1999” tem participação de outros nomes do rap paraense, como Drin Esc e Michel Zumbi, e do carioca SD9. Nic utilizou o ano em que nasceu para nomear este trabalho de estreia, que reflete a vida da artista traduzida em arte. “Como é meu primeiro EP, ele é muito pessoal. Diferente de alguns artistas que fazem trabalhos conceituais, o meu traz dramas que eu vivi e tem participação da minha mãe, Roze, e do meu irmão, Eduardo, em três interlúdios”, explica a rapper.
“Esse EP fala sobre vários acontecimentos da minha vida, especialmente dos últimos dois anos. Só tenho 22 anos, mas já vivi coisas que muitas pessoas mais velhas não viveram. Ele fala sobre pessoas que tiveram de amadurecer antes do tempo e ainda sobre força e coragem”, descreve ela.
São músicas inéditas que exploram uma sonoridade mais jovem e violenta do rap, experimentações feitas por ela ao lado do produtor Navi Beats: “Interlúdio I”, “Remédio pra Racista É Bala”, “Interlúdio II”, “WDD” (feat com Drin Esc), “Interlúdio III”, “Missão Completa” (com SD9, um dos maiores representantes do grime nacional), e “Ivy Queen”, com Michel Zumbi.
Nic diz que o álbum trouxe um grande amadurecimento musical, especialmente pela dificuldade de compor letras tão pessoais. “Entendi que cada pessoa tem seu processo, seu jeito de ser, sua autenticidade. E ao ver o resultado, o EP tem uma forma minha de falar, de me expressar, é aquilo que eu queria fazer enquanto artista”, diz.
Pessoalmente, esse trabalho também teve uma missão a ser cumprida: a de trazer paz à rapper. “Senti um alívio muito grande porque consegui colocar coisas que estavam pesando demais sobre mim. É inevitável sentir raiva, mas a gente pode pegar esse sentimento e transformar em outra coisa”.
TRANSFORMADOR
Além da violência sofrida ano passado, todo o preconceito que já passou na vida, Nic transformou em arte. “Situações de racismo, que é uma das coisas que mais mata a gente que é preto, motivaram as letras, as batidas. O racismo tira nossos sonhos, acaba com a nossa autoestima. Não acho justo ficar calado diante de tudo isso”, desabafa.
Nascida na periferia de Icoaraci, a rapper traz memórias de violência ainda da infância, quando perdeu amigos na chacina de seis adolescentes naquele distrito, em 2011. As manchetes do trágico episódio são o recorte que ela escolheu para dar voz ao que vive diariamente com o racismo, apresentado no “Interlúdio II”. “Eu era muito nova, estava no ensino fundamental. Alguns eram da mesma sala que eu, outros, não. Foi muita dor. Eles eram nada mais que meninos, foi o primeiro choque que tive na vida”, lembra Nic.
“WDD” traz a primeira parceria com Drin Esc, no clima de ataque. “‘WDD’ é uma abreviação de White Durag, acessório usado pelos pretos. E a música traz uma crítica aos que se apropriam de coisas que são nossas, de maneira desrespeitosa”.
A última parte do EP é anunciada pelo “Interlúdio III”, um funk lo-fi com clima de lovesong, com a participação do irmão de Nic. Mas ela confessa ter carinho especial pelas faixas “Remédio pra Racista é Bala” e “Ivy Queen”. “Cantar as coisas como afirmação muda muita coisa. A faixa já diz isso. Em ‘Ivy Queen’, explorei algumas texturas sonoras. Ela é bem melódica, mas é muito dura. Fala sobre reagir às coisas que fazem pra gente de ruim. Fala muito sobre mim, de ter tido coragem, que me fez cuidar da casa muito cedo. Isso mudou muita coisa em mim. Acho que a gente precisa ter coragem até para ser quem é. Eu sempre fui muito corajosa para fazer o que queria, ouvir e cantar o que queria. Acho que essa palavra me representa muito. Até para falar e amar, precisa ter coragem”.
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