É tarde de 31 de dezembro de 2022. Em uma loja de conveniência, em um dos cruzamentos mais movimentados de Belém, uma senhora sozinha, de aproximadamente 80 anos, pergunta ao balconista se eles vão abrir no dia seguinte. Ele diz que sim, “funcionaremos normalmente”. Ela, então, agradece e caminha lentamente, provavelmente, de volta para casa. Eu não a conheço, mas vou chamá-la de “Andreia” (coragem, em grego).
A dois quarteirões, próximos dali, um grupo de pessoas, em sua maioria idosos, reúne-se em frente a uma casa, como faz todos os dias. As calçadas largas da rua, a aparente tranquilidade e um hospital que fica em frente devem promover, ainda mais, os olhares e as conversas, e favorecerem a manutenção desse hábito, já residual na grande cidade.
A cidade parece proporcionar formas de convívio diferentes. Pessoas sozinhas, não necessariamente solitárias, e pessoas que em grupo parecem dividir os mesmos interesses.
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Belém, nesse sentido, no aspecto de reunir pessoas, é uma comunidade. Mas poderia, ainda, a cidade ser considerada uma comunidade política?
Aquela em que a sua principal finalidade (estou transpondo, com certa indisciplina, a ideia de cidade-estado para uma ideia moderna de cidade) é promover um bem, lembrando, distantemente, a definição de Aristóteles, no famosíssimo início da obra “Política”?
A concepção naturalista da cidade (cidade-estado, pólis) aristotélica, como se sabe, propõe que os indivíduos se unem porque a natureza assim os impele, para sua própria sobrevivência e permanência.
Não apenas isso, a cidade precede o indivíduo, já que, para o grego, a parte apenas se define pelo todo. É o viver na coletividade política (na cidade-pólis) que define o homem.
Daí que para Aristóteles viver na cidade-estado não é apenas viver em conjunto, mas viver bem. Isso significa que a natureza da cidade, do estado, como nós ainda adotamos, é a promoção do bem comum, essa é sua definição.
O indivíduo, que tem o dom da fala, ao contrário dos outros animais, e que por isso detém o poder de escolher e julgar, pode, investido de justiça e moral, criar uma coletividade voltada para aquilo que o define, ser um animal político (“zoón politikon”).
Quase todos conhecemos essas argumentações, aqui abruptamente resumidas, do filósofo grego, exatamente porque, dentre outras coisas, elas fundamentaram grande parte da compreensão da política e do estado por séculos.
Belém não é uma “pólis”, evidentemente, mas o espírito do viver em comum (a analogia aqui é mais inspiradora que comparativa) ainda nela habita.
Nessa múltipla urbe, uma senhora entra em uma loja buscando manter seu hábito; um grupo de pessoas, pelo mesmo motivo, junta-se para conversar.
Ambos, de certo modo, desafiam a ideia de uma cidade, como Belém, que em quase tudo parece não atender ao chamado do viver em conjunto, que dela se participe, realizando a sua finalidade, a finalidade do cidadão (o conceito de cidadão da Grécia antiga tinha relação com a participação política direta ou indiretamente, mas nem todos, como se sabe, eram considerados cidadãos) de participar do bem comum.
Mas, aqui, não é Belém ou o ente estatal somente a proverem esse comportamento, esse hábito, esse bem.
De certo modo, há ainda, não no sentido estritamente aristotélico, uma cidade que permanece apesar da fragmentação do ambiente citadino e mesmo com a inequívoca ausência de um estado enquanto poder.
A atitude da senhora e do grupo da calçada parecem exclusivamente individuais, mas não são. São comportamentos de um sentido maior, sentidos que permanecem em uma grande cidade como Belém.
No caminhar sozinha de casa para a loja, a senhora queria se assegurar que, mesmo em uma data incomum, ela iria conseguir seu pão, ou doce, onde sempre compra.
Há um hábito de sair de casa e se comunicar com a cidade, há uma tradição que, sendo assegurada, satisfaz, para a metódica cidadã, a sua doméstica riqueza, sua vida.
Os que ainda permanecem nas frentes de suas casas desejam apenas manter-se na calçada, essa extensão da casa que se comunica com a rua, sendo uma interseção ainda possível entre as separadoras grades de janelas e portas e uma certa necessidade de se integrar, com os outros, ao espaço citadino.
Se a noção de cidadão na antiguidade grega se liga à ideia de participação política na cidade-estado, na contemporânea cidade, essa noção parece cada vez mais distante.
Talvez a distância entre o indivíduo e o estado não possam suscitar essa direta participação como em momentos da antiguidade helênica.
Não só porque a participação representativa indireta na cidade, no estado ocidental, se tornou uma das formas mais aceitas há muitos séculos. Mas, possivelmente, porque, com o distanciamento do aparato burocrático político, restou a uma parte dos cidadãos gritar em frente à TV, enraivecer-se diante de uma mensagem no celular, comprar um pão, ou ficar em frente de sua casa.
Você, estimado leitor, pode estar pensando que a senhora da conveniência poderia pedir seu produto pelo aplicativo, e que, por outro aplicativo, os contempladores da calçada poderiam manter suas conversas.
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Sim, poderiam, e não há motivos para questionar que ambos os comportamentos se complementem hoje.
Mas, talvez, exista um elã que faça alguém sair de casa, congraçar-se com aquele caminho da cidade, e falar diretamente com alguém, mesmo que seja para fazer uma pergunta simples.
Haveria um mesmo motivo no ato de se estender para além dos quartos, salas e telas de celular e olhar para os outros e, principalmente, olhar para os outros e a cidade.
Pode parecer romântico, mas é possível que haja um certo cerne irremovível de nossa atitude gregária, de participação da cidade, que ainda, para lembrarmos Aristóteles, de algum modo nos defina – “zoón politikon”.
Na Belém do amanhã, espero passar novamente pela rua dos que ficam sentados na calçada e espero, antes, encontrar dona Andreia na fila do pão.
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