Considerada a metrópole da Amazônia, Belém do Pará possui uma cena cultural efervescente e plural, com um público apaixonado pelos mais diversos ritmos, desde o brega e o carimbó à Música Popular Brasileira e o rock. Com uma produção cultural tão intensa, a cidade está na rota de shows nacionais e até internacionais. No entanto, os preços cobrados pelos ingressos têm dificultado ou até mesmo impedido os fãs de prestigiar seus artistas favoritos.
Um desses exemplos é o show anunciado pelos irmãos Maria Bethânia e Caetano Veloso, uma das turnês mais aguardadas em todo o Brasil, que contará com apresentações em oito cidades. Em Belém, o evento será no dia 29 de setembro no Hangar. Os ingressos começaram a ser vendidos desde a última quarta-feira, 20, para o público em geral, com valores de R$ 370 acrescido de R$74 de taxa – para a pista premium “Ourocard” – e de R$ 265 somados à taxa de R$53, para a pista. Esses são valores diminuídos, cobrados para o público idoso e para quem paga meia-entrada. O valor integral é de R$530, mais R$106 de taxa de serviço.
Se os fãs expressaram felicidade pela turnê incluir Belém, com primeiros dias com filas nos postos de venda, os valores também geraram manifestos de descontentamento nas redes sociais, até mesmo entre fãs que também são artistas.
É o caso do ator, diretor, pesquisador e professor Alberto Silva Neto. “É uma pena que talvez as últimas oportunidades de assistir a artistas como Caetano e Bethânia ao vivo esbarram na falta de condições financeiras para a esmagadora maioria da população brasileira. São artistas que atravessam toda a vida de uma geração como a minha, mas circulam pelo país no auge de suas trajetórias em condições excludentes, pelo valor de ingressos praticados. Lamento profundamente, mas não foi dessa vez. Espero ainda assistir ao Caetano ao vivo nesta existência, dele e da minha. Não perdi o desejo e nem a esperança”, diz ele.
“Dezenas de canções de Caetano, entre outros artistas da nossa música popular, estão ligadas a momentos e experiências significativas da minha vida. Creio que isso seja comum a muita gente, porque a canção popular é elemento essencial da nossa formação cultural. Então, percebê-los, em parte, inacessíveis, nos causa certa frustração”, completa Alberto Silva Neto.
O músico, compositor e poeta Renato Torres também expressa um desconforto em relação aos preços ofertados pelos ingressos da turnê dos artistas baianos. “Eu não vou para o show, apesar de serem dois artistas que eu adoro, um encontro que, com certeza, deve ser brilhante. Acredito que a experiência não vai ser completa para mim, porque meu ouvido é muito exigente, eu me importo com detalhes técnicos, como a qualidade do som, e em ouvir direito a voz do artista. Eu já tive uma experiência anterior de ver o Caetano com os filhos no show ‘Ofertório’ também no Hangar e foi uma experiência ruim: havia muita gente, muitas pessoas conversavam em paralelo e o som estava ruim”, critica.
Renato Torres diz que consideraria ir a um show no Estádio Olímpico do Pará Jornalista Edgar Proença, o Mangueirão, após ouvir relatos sobre a qualidade de som do local. “Ainda assim, penso que há um certo abuso nos preços por esse tipo de show. Vi pessoas reclamando que em outros lugares do Brasil, por exemplo, os ingressos são mais baratos. Eu entendo que há toda uma logística, e o quanto deve ser caro para as produtoras trazerem estes dois artistas, ainda mais desse quilate, para Belém. Tudo deve ser muito caro, por isso o alto valor dos ingressos. Mas eu acho que não vale a pena, para mim, pagar um alto preço para ter uma experiência ruim, porque eu vou querer ouvir bem os cantores e a banda”, analisa Renato Torres, acrescentando que é de uma geração que conseguiu ver grandes shows em Belém em espaços como o Teatro Margarida Schivasappa e Theatro da Paz, lugares que, segundo ele, são adequados para shows dessa natureza em termos de acústica, técnica e espaço.
O artista diz ainda que a política de divisão de plateia em setores é uma forma de uso recorrente que aumenta o valor dos preços. “Essa é uma estratégia nova, criada de uns anos para cá, que só serve para aumentar os lucros de quem produz o show, mas prejudica muito a experiência da plateia. Eu acho que fica valendo menos a pena. A última vez que eu fui a um show grande e que não tinha essa questão de divisão de plateia, foi na última sessão de música do Milton Nascimento, mas não foi aqui em Belém”, relata Renato Torres.
Ivete nem tão popular assim
Outro show de artista de grande público em Belém, mas que também tem assustado até os fãs mais aguerridos, pelo valor dos ingressos, é a nova turnê de Ivete Sangalo, comemorativa aos 30 anos de carreira da artista, este sim, agendado para o Mangueirão, no dia 29 de junho. Com “Ivete 3.0 – A Festa”, a artista percorrerá mais 30 cidades este ano, ocupando estádios e arenas. Mas por aqui, assistir ao show poderá custar R$ 3,6 mil, no pagamento do ingresso integral. Já o ingresso na categoria “meia jovem baixa renda” está custando nada menos do que R$ 3.186,00, com taxas inclusas.
TERCEIRIZADA
De acordo com a assessoria de imprensa da produtora Link, responsável local tanto pelo show de Caetano e Bethânia quanto de Ivete Sangalo, nos dois casos a empresa é apenas contratada local para a produção e venda de ingressos, mas não é a realizadora dos shows. Assim como também não é a responsável pelos valores estipulados dos ingressos.
Segundo a assessoria, no caso da turnê “Caetano&Bethânia”, a empresa responsável é a Live Nation Brasil, o braço no país de uma das maiores empresas do entretenimento mundial. Já a turnê “Ivete 3.o – A Festa” é organizada pela empresa 30E, também responsável pelas atuais turnês de Jão e Ludmilla. A Link, nos dois casos, não teria ingerência sobre valores, recebendo os mapas de show já prontos, com setores e valores definidos - o que, ainda segundo a assessoria da produtora paraense, seria uma tendência atual no mercado de shows, de apenas terceirizar serviços às praças que recebem os eventos.
No caso da turnê de Caetano e Bethânia, as esperanças não estão perdidas. A Link informa que, apesar de não ter gestão sobre os valores ou outras decisões, tem ponderado com a realizadora Live Nation Brasil sobre a possibilidade de transferir a realização do show do Hangar para o Mangueirão. Isso significaria abrir outros setores de plateia, com a possibilidade de inserir lugares com preços mais baixos. Também de abarcar uma outra e mais premente demanda do público – grande parte dele formado por pessoas mais velhas -, de oferecer ingressos para lugares sentados, o que no Hangar não está previsto.
Essas soluções, no entanto, ainda transitam no campo das possibilidades, e dependerão da realizadora se convencer de que Belém é capaz de atrair um público maior ao show, capaz de lotar o Mangueirão e assim aplacar os custos maiores de realização – que seriam o triplo de uma produção no Hangar, segundo uma projeção informal.
Para a Link, esse formato no estádio poderia animar até públicos de outras cidades paraenses ou da região a comparecerem ao show, já que Belém é a única cidade do Norte incluída na turnê. Mas a dúvida ainda paira na Live Nation sobre o potencial de venda, porque até sexta-feira, 22, os ingressos ainda não tinham se esgotado. É esperar para ver.
A reportagem tentou contato com a Live Nation via email, mas não obteve resposta até o fechamento deste texto.
CUSTOS
Alguns quesitos são considerados importantes para trazer um show para Belém. De acordo com o produtor Yuri Martins, diretor geral de eventos do Studio Pub Rock Festival, esses elementos foram somados a outros após o período pandêmico. “Infelizmente, após a pandemia, todos os preços dispararam, isso vai desde o preço de carros a passagens aéreas. As empresas de eventos sofreram um baque enorme”, observa ele, que acaba de trazer a Belém o show internacional dos ex-integrantes da banda Nighwish, Tarja Turunen e Marko Hietala, no fim de semana passado.
Ele aborda que uma das consequências deste cenário foi que muitas pessoas que trabalhavam com eventos e locações de equipamentos faliram ou migraram para outras áreas e, quando houve a retomada de eventos, os custos subiram muito. “Particularmente, falando de taxas e logísticas aéreas, antes pagávamos valores entre R$ 200 e R$ 300 em uma ida para Fortaleza, mas hoje em dia, esse custo chega a R$ 500 ou R$ 600 - quando a gente consegue uma promoção. Além disso, temos também impostos sobre venda de ingresso, obrigatoriedades de licença para os eventos acontecerem, custos com cargueiros, locações, entre outros”, explica Yuri Martins, reconhecendo que, em contrapartida, os salários das pessoas que pagam por ingressos não acompanharam este movimento.
Yuri detalha ainda outro custo: que os valores cobrados nas bilheterias dos shows precisam cobrir eventuais cancelamentos, decorrentes de motivos diversos, incluindo a saúde do próprio artista. “Estamos falando de uma quantidade enorme de dinheiro empregada para realizar um evento que dura algumas horas e que, se não acontecer, grande parte deste dinheiro vai simplesmente se perder. Tem de ser levada em conta a logística e os custos de fazer essa condução de artistas e de suas equipes. Isso dobra o valor quando se pensa em artistas que moram em outro país, como no caso do Studio Pub Rock Festival, que trouxe a Belém shows de diversas bandas internacionais”, ressalta.
No entanto, o produtor acredita que os valores contemplam a busca por trazer artistas de peso para o público local. “Estamos trabalhando incansavelmente para colocar Belém novamente na rota internacional. Podemos citar, por exemplo, a vinda da banda americana The Calling pelo Studio Pub Rock Festival. Ainda este ano, teremos Sepultura em sua turnê de despedida no Dia Mundial do Rock e também teremos outras atrações nacionais e internacionais. Belém está crescendo novamente no ramo de eventos grandes. Isso será bom tanto para o público quanto para os empreendedores”, acredita Yuri Martins.
CULTURAL
Junto com Renée Chalu, Marcelo Damaso é diretor e fundador da Se Rasgum Produções, empresa que tem incluído Belém na rota de grandes turnês nacionais e também de bandas estrangeiras, dentro do festival Se Rasgum. Ele discorda que o valor praticado especificamente no show da turnê de Caetano e Maria Bethânia seja caro. “É um show privado, patrocinado pelo Banco do Brasil, mas a gente está falando de duas grandes lendas da música brasileira. Pode ser a última turnê e a última chance de vê-los juntos. Essa grana parcelada, digamos assim, equivale a provavelmente dois ou três finais de semana que a pessoa segura um pouco mais a onda. Penso que as pessoas não fazem esforço de consumir cultura como gostam de consumir entretenimento ou outro tipo de coisa. Existe uma tradição de não se prestigiar a cultura e dizer que o ingresso é caro, mas eu não acho”, afirma ele, projetando que os ingressos serão esgotados antes da abertura do show na cidade.
Ele explica que a dinâmica da produtora local, geralmente, é lidar com a questão da logística em si, confirmando a fala da assessoria da Link. “A produtora não tem nada a ver com o valor dos preços, mas é claro que eles tentam lidar com a organização do festival de fora da forma que eles são demandados, é assim que costuma ser. Esse valor normalmente é passado por quem está organizando o show. O que a produtora local faz é cuidar de uma outra parte da logística, mas a questão do preço é essa. Diferente de quem trabalha com lei de incentivo, que tem a obrigação de fazer um show com ingresso acessível ao público. Mas se não é o caso, se ele é privado, acho que se cobra quanto quiser. Acredito que o que não podemos é deixar de prestigiar dois grandes medalhões da música brasileira, numa turnê única, superdisputada, como de Caetano e Maria Bethânia”, pondera Marcelo Damaso.
Apesar de ponderar a relatividade do custo para o acesso a um bem cultural, Marcelo Damaso reforça que o mercado também é feito de escolhas. Ele lembra que a Se Rasgum Produções teve em sua trajetória nomes como os de Gal Costa, Moraes Moreira, Arnaldo Antunes, Adriana Calcanhoto, Jards Macalé e Tom Zé, mas que a empresa mantém como princípio apresentar novidades. “Eles fazem parte do que a gente acredita que seja relevante para a formação de plateia. São artistas que levam um público que está disposto a conhecer coisas novas. São apenas uma cereja do bolo, eles são apenas um headline. O que a gente aposta mesmo são artistas que a gente acha relevantes, que acha que são o futuro da música ou que têm alguma coisa importante para passar ali. A gente não está atrás de artistas que vendam ingresso. Nosso interesse não é fazer festival para cinco ou dez mil pessoas, mas a gente entende o nosso nicho, a nossa missão, o nosso mercado, e que nossos ingressos são de valores muito baixos, muito acessíveis, com mais de 30 shows no pacote”, justifica ele, reiterando que a filosofia da produtora é continuar sem ter área VIP e enaltecendo artistas locais também.
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