O primeiro dia do mês marca a campanha Dezembro Vermelho, iniciativa internacional de combate e prevenção à aids e ao HIV. E muita gente ainda associa a doença e o vírus a pacientes do sexo masculino, distribídos em grupos de dependentes químicos, gays, bissexuais e transexuais, uma visão baseada em desiformação e em um preconceito enraizado
No entanto, um grupo específico, que representa mais de 50% da população brasileira, está no centro das estatísticas e, ao mesmo tempo, sendo ignorado quando o assunto é HIV: o das mulheres.
Infecções por HIV são registradas em mulheres no Brasil desde 1983. De acordo com o Ministério da Saúde, elas representam quase 35% de todas as pessoas diagnosticadas com aids no Brasil.
Para a jornalista, pesquisadora e ativista Letícia de Assis, que foi diagnosticada com HIV em 2016, as mulheres têm sido ignoradas na prevenção e estigmatizadas no tratamento à infecção.
“Nós mulheres fomos meio que esquecidas como público de prevenção e tratamento, e isso cria um limbo de acessos tanto à prevenção quanto ao tratamento para mulheres jovens (predominantemente as mais jovens e periféricas) e para as mais velhas, sobretudo as em relacionamentos longos que jamais fizeram um teste e teriam muita vergonha (e problemas) em pedir testes ou o uso de preservativo ao companheiro”, explicou.
Diagnosticada com HIV em 2016, Letícia percebeu durante seu acompanhamento de saúde que mulheres e homens recebiam outro tratamento, e passavam por diferentes “protocolos”, mesmo em uma metrópole como Florianópolis, em Santa Catarina, onde ela mora. “As mulheres continuam sendo julgadas até quando querem fazer um teste”, pontuou.
“O machismo atrapalha e muito. O homem se sente no direito de controlar o corpo da esposa, namorada etc., e isso passa pelos remédios que ela toma. Imagina se souber que ela está fazendo teste de HIV ou outra IST? Ou mesmo, se souber que está tomando PreP? Ele vai achar que ela está traindo, e não que desconfia dele”, explicou Letícia. Ela ressalta que que, em muitas situações, a mulher é infectada com HIV mesmo em um relacionamento monogâmico, em situações que o parceiro possui relações extraconjugais.
Para Letícia, a existência de casos de transmissão vertical (de mãe para filho) do HIV aponta uma falta de cuidados com mulheres que vivem com o vírus: o Brasil teve 597 casos de transmissão vertical por HIV em quatro anos, entre 2019 e 2022, segundo o Ministério da Saúde.
“O pré-natal não está funcionando como deveria ou não está sendo feito, já que o teste de HIV é um dos primeiros solicitados para a gestante. Como exigir de uma menina grávida que não faz pré-natal que ela saiba que pode viver com HIV? Que saiba se tratar e cumprir os protocolos de não-infecção do bebê?”, provocou a ativista.
Com 47 anos, Letícia não pretende ter mais filhos além da única filha, de 19 anos, que nasceu antes do diagnóstico, mas mantém uma vida sexualmente ativa e saudável com o marido, que não vive com HIV.
Maternidade com HIV
O médico infectologista Rhomero Assef, por sua vez, aponta que, de fato, a transmissão vertical do HIV pode ser facilmente evitada, desde que haja orientação à mãe e que os protocolos corretos sejam seguidos.
“A terapia é a única medida efetiva para fazer com que a mãe não passe o vírus para o filho no parto. Tomando a medicação, ela garante que em um parto normal ela não vá transmitir para a criança”, explicou o médico.
Ele também informou que, já há algum tempo, é reconhecido que pessoas que estão com carga viral indetectável (ainda infectadas, mas em níveis tão baixos que não pode ser percebidos em testes simples) também não transmitem o vírus por qualquer via conhecida.
No entanto, o médico faz um alerta com relação à amamentação: “Ainda é uma questão oficial de que a amamentação deve ser contraindicada. Mesmo com a diminuição importante da carga viral, qualquer exposição ao leite materno pode ser uma via de possível infecção”.
Ele explicou também que o acompanhamento pré-natal é o mais importante para uma gestação saudável, mas que os cuidados na gestação de pessoas vivendo com HIV são os mesmos de toda gestante: alimentação saudável, consultas regulares e atividade física.
Uma paraense, que preferiu não se identificar, contou sua experiência depois de contrair o vírus. Grávida três anos depois do diagnóstico de HIV, em 2016, ela relatou que, por ter engravidado sem nenhum planejamento, o medo de infectar a criança era muito grande no período em que ainda não estava indetectável para o vírus,
“Fiquei desesperada. Eu entrei em depressão quando descobri que estava grávida. Eu tinha pavor de infectar o meu bebê. Naquele momento eu morava sozinha, em uma outra cidade fora de Belém”, explicou.
Na época, ela morava em Paragominas, e precisava fazer o tratamento pré-natal na Unidade de Referência Especializada em Doenças Infecciosas Parasitárias Especiais (UREDIPE), do governo do Estado, em Belém.
“Eu fiz todo o tratamento pelo SUS. Eles me davam a passagem de lá para Belém. Durante a gravidez eu fui bem assistida, eu amei o obstetra que cuidou da minha gravidez”, contou. Ela explicou, no entanto, que tentou fazer o procedimento de laqueadura logo após o parto, que foi negado pela médica.
A mulher também elogiou o tratamento pós-natal recebido. “Até os seis meses dela [filha] eu ganhei leite. Toda vez eu ia lá buscar latas e latas de leite. Quando ela nasceu, fez um tratamento durante dois anos, tomando remédio. Quando ia completar o terceiro ano dela, ela fez um teste e deu tudo negativo”.
No entanto, nem todas as experiências são positivas, em especial nos primeiros anos depois da descoberta do vírus, como foi o caso de Laurinha Brelaz.
Filha de pescador do município de Parintins, no Amazonas, ela foi uma das que sentiu, na pele, alguns dos piores momentos da crise de aids no Brasil, ao perder o marido para consequências da síndrome e viver com o medo de ter infectado, sem querer, o filho recém-nascido, em 1995.
Hoje, ela é integrante da Rede Brasil de Pessoa Idosa Vivendo e Convivendo com HIV (RBPI), e acredita que, mesmo depois de décadas, o estigma segue grande. “Ainda nos tratam com indiferença, principalmente militantes como eu, que estudei e fui estudada para conhecer sobre esse novo vírus que só era (chamado de) a ‘peste gay’”, conta.
“Hoje, os serviços de saúde estão precários, não temos mais recursos para trabalhar a prevenção e ainda existe muito tabu, mesmo com novas tecnologias”, explicou ela.
Em uma época em que a aids era considerada praticamente uma doença terminal, Laurinha viveu vários momentos difíceis. Ainda em luto pela morte do marido, ela precisava cuidar dos quatro filhos, em especial o mais novo, Vitor, que tinha dois meses de vida quando o pai morreu.
Três meses depois do falecimento do marido, mais um baque: Laurinha também foi diagnosticada com aids. “Foram anos de muitas tristezas e rompimentos de afetos. Tive que parar de amamentar meu filho e correr para fazer exames. Ele não se infectou com HIV, mesmo assim ficou por dois anos em acompanhamento e teve alta. Meu teste deu reagente para HIV, e eu estava com apenas 47 kg na época. Era uma sentença de morte”.
Quando todos os dias morriam meus amigos, dei plantão no hospital para que morressem com dignidade. Isso mudou minha vida. São 34 anos de luta por direitos e de ser dona da minha vida
Laurinha Brelaz, Ativista por pessoas idosas que vivem com HIVHoje, aos 64 anos, com cinco filhos, 9 netos e um bisneto a caminho, ela diz sonhar e lutar pela cura da infecção. “Não é fácil ser mulher nesse lugar, imagina ser mulher com HIV. O que nos mata ainda é o preconceito, a sorofobia, racismo, gordofobia e tantas outras. A minha luta agora é a sonhada cura para o HIV. Com tantos avanços, já estamos perto e não vou desistir. Hoje estou com 64 anos e esse vírus não irá me matar”.
Novos métodos de prevenção
Prevenir uma infecção crônica que, até o momento, obriga a pessoa a depender de medicamentos antirretrovirais é relativamente simples e não envolve o celibato.
Hoje, 104 mil brasileiros utilizam a Profilaxia Pré-Exposição (PreP). O método, seguro e saudável, tem a eficácia comprovada de 99% na prevenção ao HIV. “É um remédio de dose única, tomado diariamente, e que não traz nenhum malefício nem para a pessoa que está tomando e muito menos para a [pessoa] parceira”, explicou Rhomero Assef.
Veja as principais formas de prevenção ao HIV:
- Preservativo: Método seguro e comprovado, com eficácia quase perfeita. Além de prevenir o HIV, impede tanto outras ISTs quanto a gravidez. Disponíveis de forma gratuita no SUS.
- PreP: A Profilaxia Pré-Exposição é um método seguro e eficaz, feito para prevenção combinada com o preservativo, e utilizado por pessoas que costumam ter relações com parceiro que vive com HIV ou com parceiros eventuais de sorologia desconhecida. É um comprimido que deve ser tomado diariamente. Disponível no SUS desde 2017 com foco em públicos específicos, considerados de “comportamento de risco”, mas liberado ao público em geral.
- PeP: Profilaxia Pós-Exposição, um coquetel antirretroviral específico para pessoas que tiveram contato acidental com o vírus por qualquer meio ou vítimas de abuso sexual, que não têm como saber a sorologia do abusador. Medicamentos devem ser tomados diariamente, durante 28 a 30 dias, e o tratamento precisa ser iniciado em até 72 horas após a exposição. Disponível no SUS desde 2018.
- PreP sob demanda: Reconhecida como modo de prevenção ao HIV em 2022, é um protocolo de PreP feito para pessoas que têm relações sexuais com menor frequência e que são capazes de se planejar pelo menos um dia antes da relação. Consiste em tomar o medicamento em dosagem específica e durante um período específico, antes e depois da relação sexual. Utilizado de forma oficial no Brasil desde 2022.
- PreP injetável: Mesmo funcionamento da PreP, mas em um composto injetável, que deve ser reaplicado a cada dois meses para manutenção da eficácia. Regulamentado pela Anvisa em 2023, mas ainda em fase de testes e indisponível para o público geral no Brasil.
Quer ver mais notícias? Acesse nosso canal no WhatsApp
DADOS DO HIV E AIDS
Manter o controle dos números de casos de infectados por HIV no Brasil ainda é um desafio, já que as subnotificações existem. Porém, anualmente, o Boletim Epidemiológico de HIV e Aids é atualizado pelo Ministério da Saúde.
Atualizado pela última vez em dezembro de 2023, o documento reúne dados sobre casos de HIV em gestantes, parturientes, puérperas e crianças em risco de transmissão vertical, além de informações sobre infecções por HIV e casos de aids no Brasil, abrangendo regiões, estados e capitais.
Além disso, o documento apresenta o perfil epidemiológico dessas condições, com base nos indicadores de saúde mais relevantes. A expectativa é que as informações disponibilizadas sirvam como apoio para o controle do HIV e da aids no país, auxiliando na tomada de decisões nos âmbitos federal, estadual e municipal.
É possível observar que, recentemente, houve uma queda nos números de mães infectadas por HIV no Brasil, sendo 7.943 casos em 2022 e 4.832 casos em 2023. Já o de crianças com menos de 7 anos infectadas pelo vírus foi de 60 em 2022 e 28 em 2023. Por fim, as crianças infectadas no nascimento e 793 em 2022 e 378 em 2023.
O Ministério da Saúde possui um protocolo para prevenir a transmissão vertical do HIV. Ele inclui a realização de testes de HIV durante o pré-natal e, em caso de resultado positivo, a administração de medicamentos antirretrovirais ao longo de toda a gestação. Se indicado pelo médico, o tratamento pode ser estendido ao parto. Após o nascimento, o recém-nascido deve receber o medicamento antirretroviral e ser acompanhado pelo serviço de saúde.
VEJA OS DADOS DE HIV E AIDS NO PARÁ, NO NORTE E NO BRASIL:
LINHA DO TEMPO
Desde o surgimento da aids nos anos de 1970 e a epidemia da doença na década seguinte, os casos passaram a ser tratados com mais cuidados desenvolvendo medicamentos para tratamento e prevenção ao vírus HIV.
No Brasil, o primeiro caso da infecção foi registrado em São Paulo, no ano de 1980. Dois anos depois, surge um grande estigma e um aumento de preconceito com homossexuais, profissionais do sexo e dependentes químicos, algo que ainda é motivo de luta por ativistas o país até os dias atuais.
Já nos anos 1990, há a regulamentação dos serviços de atendimento e atenção aos casos de HIV, aids e outras ISTs, sendo garantida pelo Sistema Único de Saúde (SUS) o direito gratuito ao tratamento com antiretrovirais. Entre 1991 e o início dos anos 2010 há um vácuo de informações oficiais sobre HIV.
Nos anos 2010, o acesso aos autotestes começou a ser ainda mais facilitado para a população em geral, podendo ser encontrado em farmácias. Além disso, a Profilaxia Pré-Exposição (PreP) é distribuída gratuitamente pelo SUS.
O marco mais recente no combate ao HIV e aids ocorreu em 2023, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) aprovou a PreP injetável. O medicamento ainda está em fase de estudo para a implementação no Brasil.
CONFIRA A LINHA DO TEMPO COMPLETA:
Equipe Dol Especiais
- Rafael Miyake é repórter do portal DOL. Nascido e criado em Belém do Pará, é formado em comunicação social com ênfase em jornalismo pela Universidade Federal do Pará. É pós-graduando em Jornalismo Digital pela Anhanguera.
- Laura Vasconcelos é reporter do portal Dol, jornalista formada pela Universidade da Amazônia (Unama), nascida em Belém do Pará. É também autora de dois livros de crônicas: "Fugacidade dos dias" (2020) e "A distância" (2022).
Seja sempre o primeiro a ficar bem informado, entre no nosso canal de notícias no WhatsApp e Telegram. Para mais informações sobre os canais do WhatsApp e seguir outros canais do DOL. Acesse: dol.com.br/n/828815.
Comentar