
Descartar roupas de forma irregular nunca esteve tão fora de moda. Em tempos de urgência climática, crise econômica e consumo consciente, Belém assiste silenciosamente a uma revolução de estilo e propósito. Uma peça usada já não é sinônimo de desuso, é sinônimo de solução. E por trás de cada cabide de roupa de segunda mão, há histórias de reinvenção, impacto social e protagonismo feminino.
A indústria da moda é a segunda mais poluente do planeta, atrás apenas da petrolífera. De acordo com a Global Fashion Agenda (2022), mais de 92 milhões de toneladas de resíduos têxteis foram descartadas recentemente. A previsão é alarmante: esse número deve crescer 60% até 2030. Estima-se ainda que a produção têxtil seja responsável por 20% da poluição global de água doce e por 35% de todos os microplásticos despejados nos oceanos.

Enquanto isso, especialistas alertam para o tempo extremamente longo que as roupas levam para se decompor:
- Peças de poliéster (material derivado do petróleo) podem levar até 200 anos para desaparecer no meio ambiente.
- Já uma roupa feita de algodão, apesar de ser uma fibra natural, pode levar de cinco meses a 20 anos para se decompor, dependendo das condições.
É nesse cenário que os brechós florescem como trincheiras da moda circular. Especificamente em Belém, esses empreendimentos se transformam em vitrines de resistência, criatividade e sustentabilidade.
Feira Bora Garimpar: onde começa a revolução
Um dos principais movimentos do setor é o Bora Garimpar, feira que reúne mensalmente até 50 brechós de diferentes estilos - do vintage ao casual - e já chegou a atrair mais de mil visitantes em uma única edição. Em 2023, o evento foi reconhecido pelo Sebrae/PA como o maior encontro de brechós do Norte do Brasil.

“A maioria dos brechós participantes são negócios informais e familiares. Nosso grupo no WhatsApp já tem quase mil interessadas”, explica Ana Gibson, advogada, vice-presidente da Comissão de Direito da Moda da OAB/PA e CEO da iniciativa.

Com mais de 31 mil seguidores no Instagram, o Bora Garimpar ultrapassou a esfera comercial. Promove conteúdos educativos, cursos de capacitação com apoio do Serviço Brasileiro de Apoio às Micros e Pequenas Empresas (Sebrae), incentivo à formalização como MEI e orientação empreendedora às mulheres que movimentam o setor. Em média, 40 brechós participam de cada edição.
Moda circular: dados, desafios e protagonismo feminino
De acordo com o Sebrae, o Brasil registrou um crescimento de 48,5% na abertura de negócios com peças usadas entre 2020 e 2021, após a pandemia de Covid-19. Só no primeiro semestre de 2021, foram criadas 2.104 empresas do tipo, um salto expressivo frente às 1.416 do mesmo período do ano anterior.
Em 2023, o país tinha mais de 118 mil brechós ativos, o que equivale a um aumento de 30,97%, ao longo dos últimos cincos anos.
Segundo a base CNAE/UF do portal gov.br, O Pará conta atualmente com 2.132 brechós formalizados, sendo 132 somente em Belém. No entanto, especialistas alertam que os números reais podem ser bem maiores, devido à informalidade e ao uso incorreto de Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAEs), que dificultam o mapeamento oficial.

“A informalidade é chocante. Cerca de 99% das lideranças são mulheres, e muitas resistem à formalização, mesmo como MEI, o que as impede de acessar direitos previdenciários e programas de incentivo”, alerta a jurista Renata Batista, única doutora em Direito Empresarial com especialização em Moda na Amazônia e atual presidente da Comissão de Direito da Moda da OAB Pará.

CNAEs incorretos: uma invisibilidade estatística
Segundo Renata, muitas empreendedoras realizam o processo de abertura de empresa sem apoio jurídico ou contábil, optando por códigos equivocados, como o CNAE 48.81-4/00 (roupas novas) no lugar do 47.85-7/99 (artigos usados). O resultado é um apagamento estatístico que afeta desde estudos oficiais até o acesso a linhas de crédito e políticas públicas.
Ainda assim, a maré vem mudando. Um curso de capacitação promovido por Renata, com certificação do MEC, reuniu 30 empreendedores, 30% deles estavam na informalidade há mais de um ano. Já o Sebrae, em 2023, realizou uma reunião com 60 negócios de revenda no estado, onde estimou, com base empírica, que 90% dos MEIs registrados entre 2021 e 2023 seriam brechós.
Brechós on-line: renda, consciência e propósito
A atriz Alessa Ferrari, moradora do bairro Batista Campos, decidiu transformar o desapego consciente em negócio. Inspirada por plataformas como Enjoei e Repassa, ela criou um brechó exclusivamente on-line, onde vende roupas, acessórios e objetos pessoais.

Estava precisando de uma renda extra e percebi que tinha muitas peças paradas no armário. Unir isso à sustentabilidade foi um caminho natural
Alessa Ferrari,Ao evitar loja física, Alessa também reduz o impacto ambiental do próprio negócio: “Evito consumo de energia, água e estrutura. E dou nova vida a peças que iriam pro lixo. Isso é economia circular na prática.”
Ela vê sua atuação alinhada aos objetivos da COP 30, que ocorrerá em Belém, em novembro de 2025: “Meu brechó promove o consumo consciente e reduz o descarte têxtil. É bom pro bolso e pro planeta.”
Confiança digital e fidelização criativa
No modelo 100% digital, o principal desafio é conquistar a confiança do cliente. Para isso, Alessa aposta em fotos detalhadas, descrições honestas e boas estratégias de fidelização: “Ofereço descontos progressivos e envio brindes como peças extras do próprio brechó. Uso Instagram, Facebook, WhatsApp e OLX como canais de venda.”
Assista a entrevista:
Brechó Eco Stilus: há 30 anos fazendo moda circular no Ver-o-Peso
No coração do mercado mais famoso de Belém, o Brechó Eco Stilus é um marco de resistência e inovação. Completando 30 anos em 2025, o negócio foi fundado como Lojão das Confecções e hoje é comandado por Cássia Meireles, Filho Meireles, Marcos Neves e Patrícia Neves.

O que fazemos sempre foi moda circular. Começamos quando brechó era visto com preconceito. Hoje, as pessoas entendem o valor do reaproveitamento
Cássia Meireles,As roupas chegam em fardos de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, passam por triagem rigorosa e abastecem as araras com peças que custam entre R$ 5 e R$ 200.

Mais do que vender, o Eco Stilus acolhe, doa e reaproveita: peças não vendáveis viram panos de limpeza e parte do estoque é destinada a instituições sociais e moradores de rua.
“Nosso maior aprendizado foi olhar para cada peça com carinho e entender seu valor”, resume Cássia.
Brechó Peça Rara: luxo, curadoria e solidariedade
Com lojas nos bairros Batista Campos e Marco, o Peça Rara mostra que a moda circular também pode ser sofisticada. A franquia, comandada por Elisangela Silva, aposta na experiência do cliente: ambiente climatizado, música ambiente, peças organizadas por cor e tamanho.

“Trabalhamos com curadoria. Mesmo peças sem marca entram se forem de excelente qualidade”, explica a empresária. O público é majoritariamente feminino, entre 25 e 35 anos, mas há também roupas infantis, masculinas e móveis de segunda mão. Os preços vão de R$ 10 a R$ 9 mil.

Além da moda, o Peça Rara realiza mensalmente um bazar beneficente: peças que não foram vendidas após 90 dias e não foram retiradas por seus donos são automaticamente doadas.
Antes de comprar uma calça jeans nova, passe em um brechó. Uma única peça pode usar até 11 mil litros de água. Comprar usado é um ato de consciência
Elisangela Silva,Assista a entrevista:
“Shopping Chão”: o brechó a céu aberto que é fonte de renda e resistência na Terra Firme
Na Praça Olavo Billar, no bairro da Terra Firme, em Belém, um grupo de mulheres transforma lonas estendidas no chão em vitrines improvisadas. O local é conhecido popularmente como “Shopping Chão”, onde funciona, há quase três décadas, um brechó a céu aberto. Uma das vozes mais antigas e resilientes do espaço é a de Glória Cristina Conceição Rodrigues, de 54 anos, que há 26 sobrevive da venda de roupas usadas no local.

É minha profissão atualmente, minha única fonte de renda. É um meio que dá pra sobreviver, graças a Deus
Glória Cristina Conceição Rodrigues,Moda circular como sobrevivência
Diferente de brechós estruturados, Gloria trabalha com roupas estendidas diretamente no chão da praça. Ela consegue as peças por meio de doações, compras de universitários, igrejas e até de outros brechós da cidade. Com isso, afirma conseguir faturar entre R$ 1.000 e R$ 1.600 por mês, dependendo do movimento.
“Quando a venda é fraca, a gente tem que escolher qual conta pagar. Deixa uma continha pendente para o próximo mês, porque a renda não dá para tudo. A luz em Belém é muito cara, e pesa no bolso”, desabafa.
Sol, chuva e falta de estrutura
A rotina no “Shopping Chão” é marcada por desafios climáticos. Sem cobertura ou estrutura mínima, as trabalhadoras enfrentam sol intenso e chuvas repentinas que comprometem mercadorias, principalmente calçados.
“O tempo fechou, temos que correr e tirar tudo. Mesmo que não chova, o movimento já cai. Já perdi muita mercadoria por causa disso”, conta Glória.
Apelo por dignidade
Com quase três décadas de história no mesmo ponto, a empreendedora faz um apelo por melhorias no espaço público onde trabalha diariamente: “O nosso espaço precisa de cobertura. O sol é muito forte, ficamos o dia inteiro nele e acabamos adoecendo. Uma coberta ia proteger a gente e as mercadorias que conseguimos com tanta dificuldade.”
Essa realidade escancara um lado pouco romantizado da moda circular, que vai além de tendências ou sustentabilidade: ela representa resistência, economia popular e sobrevivência.
Assista a entrevista:
Empreendedorismo digital como fonte de renda
Para quem sonha em empreender com brechó, mas não sabe por onde começar, a boa notícia é que é possível iniciar de forma simples e online. Criar uma lojinha virtual ou começar pelas redes sociais já é um passo importante, além de gerar uma renda extra, essa iniciativa ainda contribui para o meio ambiente, ao incentivar o consumo consciente e reduzir o descarte têxtil.
O Sebrae/PA oferece cursos gratuitos e totalmente online voltados ao empreendedorismo digital. Saiba mais. Há opções para quem deseja aprender a montar uma loja virtual, criar páginas nas redes sociais, divulgar produtos e muito mais. É uma excelente oportunidade para transformar ideias em negócio, com baixo investimento inicial e impacto positivo na sociedade.
COP 30: oportunidade para a economia circular da Amazônia
Com a chegada da COP 30, que acontecerá em Belém, práticas sustentáveis que antes eram invisibilizadas começam a ganhar destaque, inclusive nos bairros mais periféricos da cidade. Segundo o historiador e professor da UFPA, Aldrin Figueiredo, esse movimento está diretamente ligado a uma transformação cultural mais ampla:
“O crescimento dos brechós em Belém e no Brasil reflete uma mudança profunda nos valores sociais. Há uma rejeição ao consumismo desenfreado, uma valorização da sustentabilidade, da economia e da autenticidade. Em vez de buscar roupas de grife, muita gente prefere peças únicas, com história, o que também é um novo critério de distinção social.”

Ele também destaca que esse tipo de consumo consciente se conecta com as grandes pautas ambientais em discussão global: “Frequentar brechó hoje pode significar consciência ambiental, crítica ao sistema e estar antenado com os debates contemporâneos. É uma prática local que dialoga diretamente com os desafios globais que estarão em pauta na COP 30.”
A realização da COP 30 em Belém é vista com entusiasmo pelos empreendedores do setor. Para eles, a conferência pode representar uma virada de chave.
“Estamos nessa causa há 30 anos. Agora é o momento de mostrar ao mundo que é possível trabalhar com moda de forma sustentável, gerando renda, consciência e impacto positivo”, diz Cássia, do Eco Stilus.
Belém como vitrine sustentável da moda amazônica
A região amazônica tem a oportunidade histórica de mostrar ao mundo que é possível aliar desenvolvimento à preservação ambiental. Dra. Renata propõe um pacote de medidas para tornar Belém referência em moda sustentável na COP 30, com foco em cinco pilares fundamentais: não geração de lixo têxtil, redução, reutilização, reciclagem, tratamento adequado e descarte consciente.
Entre as propostas protocoladas, estão:
- Criação de uma legislação municipal pioneira de responsabilidade pós-consumo têxtil, tornando obrigatória a coleta de resíduos para marcas com mais de duas lojas;
- Implantação de centros de coleta e reciclagem de roupas em áreas estratégicas da cidade;
- Fomento à moda autoral e inclusiva, com editais específicos para estilistas indígenas, quilombolas e ribeirinhos;
- Criação de um selo de moda sustentável paraense e o devido registro de patrimônios como o bordado Marajoara e o artesanato de Icoaraci como Indicações Geográficas;
- Fundação de um Museu Vivo da Moda Amazônica, com oficinas, exposições imersivas e programação cultural interligada à COP 30;
- Criação de um Observatório de Moda Sustentável do Pará, para monitorar e divulgar práticas responsáveis;
- Montagem de um Parque Tecnológico de Bioeconomia na Moda, voltado ao desenvolvimento de materiais a partir de fibras da floresta.
A proposta é ambiciosa, mas realista. Um dos focos é também garantir dignidade a quem empreende nas ruas: com a instalação de coberturas e barracas para feiras a céu aberto, mulheres empreendedoras terão mais proteção e visibilidade ao vender suas peças em shoppings populares como o “shopping chão”.
Além da atuação individual, políticas públicas são fundamentais. As propostas da Dra. Renata incluem:
- Incentivos fiscais para empresas que adotem práticas sustentáveis;
- Criação de escolas técnicas com identidade amazônica, oferecendo cursos de design, tingimento natural e biojoias;
- Manual jurídico da moda sustentável, com orientações práticas para empreendedores;
- Tribunal da Moda Sustentável, em parceria com OAB, Procon e MP, para resolver conflitos ambientais e trabalhistas;
- Banco de matéria-prima circular, com tecidos e aviamentos doados por lojas e redistribuídos a designers locais.
Além disso, ela defende a participação ativa da moda paraense nos Conselhos de Cultura, para que as decisões nacionais incluam a realidade da região.
Um novo modelo possível
O modelo fast fashion, baseado em consumo desenfreado e descartabilidade, está se esgotando. Em seu lugar, ganha força um ecossistema de moda circular, inclusiva, justa e com identidade amazônica.
Com políticas públicas sérias, protagonismo feminino, engajamento da sociedade e incentivo ao empreendedorismo, Belém tem tudo para ser vitrine de um novo modelo de desenvolvimento: um que respeita a floresta, valoriza saberes ancestrais e constrói um futuro mais justo para todos, sem abrir mão do estilo.
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