
Quando os sete membros da família Assunção chegaram à localidade onde hoje se encontra a Comunidade Quilombola do Rosário, três imponentes bacurizeiros já tinham suas raízes fincadas no solo fértil do território.
Fugindo do regime escravagista que ainda imperava no Brasil nos idos de 1825, em pleno século XIX, o grupo chegou ao município de Salvaterra, no Arquipélago do Marajó.
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No novo território, as raízes dos fundadores do quilombo se uniram às dos bacurizeiros que testemunham a história de luta por liberdade e de comunhão com a natureza, valores que ainda hoje permeiam as relações na comunidade.
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No quilombo do Rosário, a resistência do povo negro permanece viva, assim como as árvores que continuam de pé.

Nascida e criada na comunidade, Eliêde Vasconcelos é a sexta geração dos primeiros moradores do território, pessoas escravizadas que buscaram refúgio no Marajó.

Na época de seus antepassados, em 1825, a comunidade recém-formada ainda atendia às características de um pequeno povoado.
“Vieram sete pessoas de uma região denominada Anabiju. E com essas primeiras pessoas é que se formou o povoado de Rosário. Foram as primeiras pessoas que chegaram, que se instalaram, foram casando, casamentos de parente com parente, e se formaram as primeiras famílias, na qual somente eram quatro residências”.
A memória transmitida pelos mais antigos através de relatos orais dá conta que a jornada de luta dos seus fundadores apenas iniciou em 1825, mas se perpetua ao longo do tempo, gerações à frente.

Com o destino ainda incerto, os primeiros moradores do povoado fizeram uma promessa à Nossa Senhora do Rosário para que conseguissem permanecer nas terras onde já começavam a plantar mandioca e a extrair o látex das seringueiras.
A obtenção da graça envolvia o compromisso de batizar a comunidade com o nome da santa.
A promessa se cumpriu, mas não sem a luta de seus moradores. Ano após ano, gerações vivenciaram diferentes pressões vindas de fora do território, mas apesar delas, a vida seguiu alinhada a um modo de vida muito característico de comunidades remanescentes de quilombo: o senso de coletividade e a forte ligação com a natureza e com o que a floresta oferece.
Um modo de vida iniciado pelos ancestrais e que até hoje é seguido pelas gerações mais novas.
“A partir de 1825, as famílias foram se organizando, foram construindo mais casas, aumentando o número de famílias. E, mesmo assim, as famílias sempre trabalharam na coletividade, um ajudando o outro, partilhando o que tem. Se vai pescar, partilha; se vai caçar, também partilha; se vai extrair o açaí, também partilha com o vizinho”, conta Eliêde.
Foi neste trabalho centrado na coletividade, fazendo a partilha e trabalhando em mutirão, que a Comunidade do Rosário se desenvolveu ao longo dos anos.
Ancião e primeiro presidente da Associação da Comunidade Quilombola do Rosário, Manoel Vasconcelos de Assunção, 85 anos, lembra muito bem das mudanças vivenciadas no território.
“Mudou muito, quando eu me entendi aqui eram duas, três casinhas cobertas com telha. O resto era tudo no barro e na palha. Hoje em dia, a gente já não está vendo quase essas coisas. Já mudou muito. Também era um pouco pequena a nossa comunidade e hoje em dia está o dobro do crescimento, graças a Deus. A gente fica muito feliz com isso”, analisa, fazendo questão de reforçar que é nascido e criado na Comunidade do Rosário.
Ainda que a coletividade permeasse as decisões do território desde os antepassados, a organização formal veio há 20 anos, a partir da criação da Associação Comunitária de Remanescentes de Quilombo de Rosário, organização legalmente instituída com CNPJ e estatuto próprio.
A conquista é fruto de uma mobilização que envolveu também outras comunidades quilombolas da região de Salvaterra, como a Comunidade Siricarí, cujo presidente à época fez o convite para que a comunidade do Rosário participasse de uma reunião que envolvia a participação de agentes do governo, além de pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA) e membros do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa).
Sem as facilidades que a tecnologia proporciona hoje, Manoel lembra que esse trabalho de envolvimento da comunidade era feito, literalmente, de casa em casa.
“Era um informando o outro porque foi uma coisa que, pelo menos eu, não tinha conhecimento como era o procedimento, mas a gente foi se informando até que chegamos aonde nós estamos”, recorda.
“Era difícil porque pouco existia esses conhecimentos que hoje em dia tem. Nesse tempo era muito mais diferente do que agora. Até esse negócio de venda, para comprar as despesas de casa. A gente andava muito longe daqui, mais de hora, para poder chegar aonde tinha as coisas para comprar”.
A pescadora aposentada Raimunda Figueiredo também recorda o período de maior dificuldade. Apesar de ser, pela primeira vez, a atual presidente da associação, por muitas vezes ela foi vice-presidente da entidade e acompanhou de perto as dificuldades enfrentadas.
"Antigamente, eu digo para os meus companheiros, não tinha celular, não tinha nada. O seu Manuel ia de casa em casa avisar que ia ter reunião. Era um serviço de formiguinha. Hoje em dia, a gente coloca no grupo da associação e todo mundo se mobiliza. Então, como ele diz, ficou mais fácil hoje”, avalia.
“Antigamente, quem não tinha moto ia de pés para as reuniões, nós íamos para reunião em Santa Luzia, que é um quilombo muito longe daqui, de bicicleta. Então, nós sempre lutamos”.
Através desse trabalho conjunto e comunitário, hoje o território pode contar com escola, posto de saúde, igrejas, um cemitério, a sede da associação, uma casa de farinha.
“Tudo foi coisa de mutirão dos primeiros”, conta ela, que não nasceu na comunidade do Rosário, mas que migrou de outra comunidade quilombola para lá há quase 30 anos.
“Eu migrei de uma comunidade chamada Siricarí, que foi uma das primeiras reconhecidas como quilombo em Salvaterra, e casei para cá, acabei de criar os meus filhos - sou mãe de dois filhos e tenho um neto – e aqui a gente sempre lutou muito.
Eu moro vai fazer 30 anos aqui no quilombo e desde que eu cheguei a gente trabalha nessa comunidade. Hoje em dia a gente luta pelo nosso título definitivo. A gente já tem a nossa portaria, já somos reconhecidos pelo Governo Federal, mas ainda falta esse título, que é a cartada final”.
Hoje, o território quilombola do Rosário abriga as vilas do Rosário e Mangabal, onde moram cerca de 100 famílias. No local, os moradores atuam em atividades como a agricultura familiar, a pesca artesanal, a extração do açaí e ainda o desenvolvimento do artesanato pelo grupo de mulheres.
Um modo de vida diretamente integrado à natureza e ao que ela oferece. Filho da comunidade do Rosário, Ósimo Assunção conta que é dentro do próprio território quilombola que os seus moradores encontram a fartura que precisam para se alimentar.
Do extrativismo e da agricultura desenvolvida de maneira natural e integrada à floresta, eles produzem itens como mel de abelha, limão, farinha de tapioca, farinha d’água, abacaxi, mandioca, assim como mudas para o replantio e o artesanato.
“A nossa comunidade é resistente na luta, no coletivo e nos nossos serviços do dia a dia. Nós temos as nossas atividades de roça, pesca, caça e extrativismo. A gente tem as nossas criações suínas, de galinha caipira, alguns têm os bovinos e os caprinos. Fora disso, a gente tem as nossas atividades de agricultura. Então, graças a Deus, nós somos ricos desse potencial”.
Ósimo lembra que a produção retirada das roças plantadas em forma de mutirão é dividida entre os moradores da comunidade para o consumo das próprias famílias e o excedente é vendido para outras comunidades próximas.
Com isso, muitos dos moradores trabalham ali mesmo, mas outros, sobretudo os mais jovens, se ausentam temporariamente do território para estudar e buscar qualificação.
“Uma parte de nós trabalha dentro da comunidade e uma parte sai para trabalhar fora, que é o seu interesse de saber as políticas públicas e que vem trazendo também para compartilhar com o nosso quilombo. Tem muita gente aqui que não está presente com a gente porque estão em uma fase de estudo”, conta.
“Mas nós somos uma comunidade, graças a Deus, de atividades próprias e que a gente se sente feliz de estar nesse clima natural aqui. O nosso espaço, graças a Deus, é longo, é bonito e a gente se sente muito orgulhoso de estar vivendo a nossa sociedade assim. Dentro da nossa atividade, a gente faz os nossos serviços”.
E na lida cotidiana do trabalho com a terra, os saberes ligados aos recursos oferecidos pela floresta se evidenciam. Caminhando por entre os pés de mandioca plantados no último mutirão, Ósimo se abaixa para recolher do chão uma estrutura que caiu da palmeira de inajá.
A espécie de casca é o que recobre os cachos do fruto, mas quando retirado do pé, serve como reservatório de água na lida do dia a dia.
“Isso é uma parte do inajazeiro. Nasce o cacho, do cacho gera a fruta e fica só essa coberta em cima do cacho. Mas ela tem uma serventia. A gente tira ela tanto para colocar uma água para lavar a mão na roça, quanto pra botar comida pro porco comer”, explica.
“A gente coloca a comida e põe no chão e o porco vem e come. A gente já não gasta dinheiro com material de plástico porque o plástico quebra, e isso aqui tem uma boa durabilidade na parte do verão porque ele é um casco duro. A gente corta vários copos desses aqui pra fazer o nosso uso agrícola, caseiro. E é a natureza que faz”.
Salvaterra, território quilombola
A ancestralidade e modo de vida herdado dos antepassados remanescentes de quilombos se repete ao longo de Salvaterra.
De acordo com o Censo 2022, entre os municípios paraenses, Salvaterra tem a maior proporção de participação quilombola em sua população total, com 30,82% de sua população total se autodeclarando quilombola.
Ao todo, são 7.437 pessoas quilombolas no município, o que coloca Salvaterra entre os 10 municípios paraenses com a maior quantidade de pessoas autodeclaradas quilombolas.

Liderança da Comunidade Quilombola de São Vicente, Luana Gomes conta que a grande maioria das comunidades quilombolas localizadas em Salvaterra são lideradas por mulheres.
E como parte da rotina diária nelas está a defesa da cultura quilombola e o fortalecimento do sentimento de pertencimento junto às novas gerações.
“São muitas comunidades, somos 19 aqui em Salvaterra, e a gente tem uma entidade que regulamenta todas as associações, que é Malungu (Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará). Então, nós conseguimos fazer essa parceria, as comunidades se reúnem principalmente quando é em busca dos nossos direitos. A gente trabalha muito para que as pessoas tenham consciência desse pertencimento porque a gente vê que os mais velhos estão partindo e levando esse conhecimento com eles porque a cultura vai se modificando. Então, a gente trabalha muito nesse ponto de fazer com que os nossos jovens entendam a questão do pertencimento, do que é ser quilombola”, reflete.
“A maioria das comunidades quilombolas aqui são lideradas por mulheres, são poucos os homens que estão nas lideranças. E nós temos os nossos desafios diários, que não são fáceis, mas a nossa busca por direitos é incessante”.
Resistência
A história de resistência da Comunidade Quilombola do Rosário iniciou em 1825, quando as primeiras pessoas escravizadas chegaram ao arquipélago do Marajó em busca de refúgio e liberdade.
Essa resistência vem sendo defendida ao longo das gerações frente a diferentes formas de pressão vindas de fora do território.
De acordo com o inventário realizado durante o processo de reconhecimento do território quilombola do Rosário pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), ainda no século XIX os remanescentes do quilombo precisaram resistir aos recrutamentos forçados promovidos pelo então Império do Brasil para enviar os homens à Guerra do Paraguai; assim como também tiveram que resistir, ao longo do século XX, ao assédio de fazendeiros e grileiros que insistiam em avançar sobre áreas do território.
Neste século XXI, os conflitos gerados pela expansão da monocultura em áreas de fronteira com o território quilombola impõem dificuldades de acesso dos moradores aos locais de pesca, caça e extração do açaí, atividades que são a base da alimentação na comunidade.
Em julho de 2024, uma portaria publicada no Diário Oficial da União (DOU) reconheceu a área de 3.721 hectares como sendo terras da Comunidade Remanescente de Quilombo do Rosário.
O documento faz parte do processo de regularização fundiária iniciado no Incra ainda em 2006. O que os moradores esperam, agora, é a titulação coletiva de domínio, etapa final do processo de regularização que permitirá a “desintrusão de ocupantes não quilombolas do território”.
Fonte: com informações do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Disponíveis em: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202407/territorio-quilombola-rosario-e-reconhecido-no-para
Territórios quilombolas
Os Territórios Quilombolas Titulados são áreas que foram integralmente tituladas pelo estado. Antes, porém, essas áreas passam pelas seguintes fases:
- Delimitação (quando existe alguma delimitação formal, ainda que sem providências adicionais quanto ao processo de titulação;
- Estudo Técnico (área conta com limites publicados em estudo feito por órgãos estaduais de terras);
- Relatório Técnico de Identificação e Delimitação - RTID (feito a partir do Estudo Técnico e é considerado como a primeira fase para a titulação da área);
- Portaria (por meio da qual são reconhecidos os limites da área);
- Decreto (garante a desapropriação da área por interesse social);
- Titulação (por meio do qual o Estado reconhece a área como Território Quilombola titulado).
Para o Censo 2022, o IBGE considerou “Territórios Quilombolas oficialmente delimitados” todos aqueles que apresentavam alguma delimitação formal no acervo fundiário do Incra ou dos órgãos com competências fundiárias nos estados e municípios
Fonte: Censo IBGE 2022. Disponível em: https://censo2022.ibge.gov.br/; e informações encaminhadas pela assessoria de comunicação do IBGE a respeito do Censo 2022.
Pará
Pará, como um todo, é o estado com a maior quantidade de Territórios Quilombolas (TQs) oficialmente delimitados, somando 87 TQs que abrigam 44.533 quilombolas.
Fonte: Censo 2022 – IBGE.
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