
Era uma manhã ensolarada de quinta-feira quando atravessei o portão de ferro que guardava, há mais de um século, um dos tesouros mais silenciosos de Belém. Por um ano inteiro sonhei com aquele momento. Não sabia, porém, que em menos de duas horas teria a sensação de atravessar o tempo e caminhar por uma cidade de 1909, ainda viva entre as paredes do Palacete Amyntas de Lemos.
Com a autorização dos herdeiros, o corretor Filipe Lisboa abriu as portas da residência para nossa equipe. O gesto, simples mas simbólico, não revelou apenas um imóvel de valor histórico. Revelou um universo inteiro, onde cada objeto parecia resistir à pressa da modernidade e guardar consigo um pedaço da memória da cidade.
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Logo ao entrar, fui recebida pelo cheiro da madeira antiga e pelo ranger do piso, sons e aromas que pareciam saudar os visitantes. À esquerda, um escritório preservava móveis de acapú e pau-amarelo, imponentes e intactos. Sobre a mesa, um retrato de Amyntas de Lemos observava em silêncio, ladeado por pequenos objetos pessoais como um relógio parado às 3h35 e uma imagem empoeirada de Jesus. Teria aquele relógio congelado no instante de uma despedida?
No mesmo escritório, flores de plástico desbotadas repousavam em vasos solitários. Uma cômoda sustentava mais um retrato, desta vez, Amyntas dividia espaço com a esposa, Manoela Alvarez. As fotos, em preto e branco, revelavam muito mais do que rostos sérios; eram fragmentos de uma vida congelada no tempo, memórias que se recusavam a desaparecer.
Na cozinha, três cadeiras de balanço lado a lado guardavam a lembrança das irmãs Eny, Olga e Léa, filhas do engenheiro. Foram elas as últimas guardiãs do casarão, resistindo até 2009. Eny, dedicada à organização, acordava cedo para manter cada detalhe em ordem; Olga cultivava plantas com paixão; e Léa zelava pela cozinha, preservando tradições familiares. Era possível sentir suas presenças ainda ali, nos objetos que deixaram.
Cada cômodo parecia falar. A mesa de madeira com toalha de crochê sob plástico, os jornais antigos, as flores artificiais e o aroma imaginado de café fresco remetiam a manhãs comuns, mas repletas de histórias. Chapéus, bengalas e guarda-chuvas descansavam na entrada, como se seus donos tivessem saído apenas por alguns minutos.
As poltronas de couro marrom da sala principal, cobertas pela poeira do tempo, ainda aguardavam visitas. Os olhares congelados em fotografias espalhadas pelo espaço davam a impressão de que os antigos moradores acompanhavam discretamente cada passo dos que ousavam entrar.
A escada em caracol conduzia ao segundo andar, rangendo como quem anuncia novas descobertas. Quartos com camas de madeira, colchas florais e cortinas intactas ainda respiravam histórias não contadas. Quem teria dormido ali? Irmãos? Amigos? Visitantes? Cada detalhe convidava à imaginação.
Construído em 1909 pelo engenheiro capixaba Amyntas de Lemos, a casa simboliza uma Belém em plena transformação urbana. Fundador do Conselho Regional de Engenharia do Pará, Amyntas se mudou a convite do governo, lecionou na antiga escola de engenharia e ali, ao lado da esposa espanhola Manoela, formou uma família com oito filhos. Hoje, sua história resiste não apenas em registros oficiais, mas na atmosfera do próprio palacete.
Ao sair pelo jardim, imaginei chás da tarde, conversas familiares e flores que um dia coloriram aquele espaço. De volta ao portão, deixei o casarão com a certeza de que a cidade pode mudar, mas a memória, quando protegida, continua viva.
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