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AUTISMO

Os desafios e o alto estresse da primeira infância atípica na Amazônia

Em uma região com especificidades geográficas, culturais e populacionais como a Amazônia, é preciso se atentar para as demandas para um gos grupos mais vulneráveis da população: as crianças na primeira infância com diagnóstico de autismo.

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Imagem ilustrativa da notícia Os desafios e o alto estresse da primeira infância atípica na Amazônia camera Lidar com o diagnóstico de autismo em uma criança nunca é fácil. Quando isso se soma à vulnerabilidade da Amazônia, o contexto é ainda mais complicado. | Rodrigo Pinheiro

Em um território de dimensões continentais e contrastes sociais profundos como a Amazônia, o debate sobre a urgência de preservar a floresta muitas vezes ofusca a necessidade de proteger seus habitantes mais vulneráveis. Mais do que enxergar a região apenas como um ecossistema vital e estratégico para o mundo, é preciso entender que os desafios vão além da pauta climática e ambiental.

Em suas vastas dimensões, a região esconde problemáticas sociais e logísticas que tornam a jornada pela garantia de direitos básicos, como saúde e educação, uma verdadeira batalha diária para incontáveis pessoas. As políticas socioambientais, que avançam em debates sobre o futuro, precisam estar intrinsecamente ligadas aos campos da saúde, educação e assistência social.

Leia também: Ciência e estratégias para garantir direitos dos autistas na primeira infância

É neste complexo cenário de carência e imensidão que milhares de famílias amazônidas enfrentam o diagnóstico e o difícil acompanhamento do Transtorno do Espectro Autista (TEA) nas crianças da primeira infância.

Um grupo vulnerável

O TEA é uma condição de neurodesenvolvimento que afeta a comunicação, interação social e o comportamento, podendo afetar questões como fala, dificuldade de contato, hipersensibilidade ou comportamentos repetitivos ou restritos. A expressão "espectro" é utilizada para descrever a ampla variação de sintomas e níveis de gravidade, que vão de quadros mais leves a outros que demandam maior suporte.

O TEA é um desafio global. No Brasil, os dados mais recentes são do Censo Demográfico de 2022, que identificou 2,4 milhões de pessoas com o diagnóstico. Na região Norte, o número é de 202 mil pessoas. Em todo o país, o maior número de casos diagnosticados é entre crianças, sendo 2,1% da população no grupo de até 4 anos de idade com o diagnóstico, e 2,6% no grupo entre 5 e 9 anos. Isso gera um alerta importante sobre a atenção das crianças na fase mais crucial do desenvolvimento, a primeira infância, que vai dos 0 aos 6 anos.

Os desafios e o alto estresse da primeira infância atípica na Amazônia
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“Você tem vários estudos que apontam que de 0 a 6 anos é a maior faixa de desenvolvimento do ser humano em toda a sua vida”, explica a dra. Flávia Marçal, advogada, pesquisadora, ativista, mãe atípica e superintendente da Primeira Infância em Belém. “É neste período que os estímulos podem gerar mais autonomia para o autista, garantindo que ele consiga se comunicar e participar ativamente da sociedade”.

Proporcionar o atendimento adequado para esta população, entretanto, é um desafio na Amazônia, uma realidade onde a vulnerabilidade social se soma à vulnerabilidade do TEA. Belém, por exemplo, possui indicadores alarmantes que historicamente dificultam o atendimento universal para a primeira infância.

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“Para você ter uma noção do tamanho do meu desafio na área da primeira infância, Belém tem uma média de 103 mil crianças de 0 a 6 anos. Desse total, 70 mil estão dentro do CadÚnico, ou seja, enfrentam alguma questão de vulnerabilidade. Dessas 70 mil, cerca de 60 mil recebem Bolsa Família, ou seja, estão inseridas em famílias que têm como renda familiar menos do que R$ 218 por mês”, explica Flávia. “Você tem noção de que 60% do meu público está em altíssima vulnerabilidade a ponto de depender de um programa de transferência de renda? E isso se falando da capital. Então dá para imaginar como é no interior”.

E se o atendimento à primeira infância já é um desafio logístico, quando se fala do recorte do autismo a questão ganha proporções ainda maiores, devido às dificuldades de acessos a atendimentos e o desconhecimento sobre o tema, questões que Flávia vivenciou na pele. Sua jornada começou com a descoberta do TEA em seu filho, Matheus, em 2013, quando ele tinha 2 anos e meio.

Inicialmente, ela percebeu que Mateus era "diferente", não falava, não olhava nos olhos dela e não demonstrava muito interesse em brinquedos. Ela foi informada por um pediatra de que "cada criança tem seu tempo", uma frase que ela aponta como tendo grande influência em seu trabalho posterior na primeira infância. Após buscar atendimento especializado e conseguir o diagnóstico de autismo de nível de suporte 3, um grau mais intenso, em que a pessoa precisa de apoio substancial, Flávia iniciou o trabalho como ativista e pesquisadora da área, integrando grupos de estudos nacionais e comissões que impactaram na criação de políticas públicas e a fizeram entender a realidade da região.

“Nós sugerimos ao Governo do Estado para que fosse criado um grupo de trabalho para começar mapear essa questão do autismo, e eu tive a honra então de ser nomeada para ele. E acho que um dos maiores desafios que a gente encontrou logo de início era exatamente essa desestrutura total de do que tinha de políticas públicas”, explica Flávia, descrevendo um cenário de amplo desconhecimento e desestrutura total das políticas públicas, mesmo após a criação de leis federais.

“A gente chegava, por exemplo, na Secretaria de Saúde, na Secretaria de Educação e a gente percebia que havia assim um total desconhecimento do que era o autismo, de quais eram as características, quais eram as legislações que tratavam sobre esse tema. Eu acho que um dos maiores desafios, assim que a gente encontrou logo de início era exatamente essa desestrutura total de do que tinha de políticas públicas”.

“E naquela época não existia lugar nenhum. Imagina que você é um prefeito do interior, um prefeito de Pacajá, e você quer criar um equipamento público, como que você faz isso? Por onde você começa? Tô falando aí 2020, 2021, que pode parecer assim só 5 anos atrás, mas há 5 anos atrás ninguém falava em centro de autismo, ninguém sabia o que eram práticas e evidências científicas.”

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A janela perdida: distância e o diagnóstico tardio

O TEA é um transtorno do neurodesenvolvimento que exige que as características apareçam até os 3 anos de idade. Por mais que existam diagnósticos em diferentes idades, o autismo é uma condição que aparece ainda na infância, mesmo que não detectado. Por isso, a janela de oportunidade da primeira infância é considerada a "melhor chance" para o desenvolvimento humano, devido à neuroplasticidade. É neste período que os estímulos podem gerar mais autonomia para o autista, garantindo que ele consiga se comunicar e participar ativamente da sociedade.

No entanto, a realidade na Amazônia dificulta esta situação, muitas vezes causando um diagnóstico tardio. Isso acontece, em parte, porque a baixa cobertura de creches e a falta de capacitação na Atenção Primária à Saúde atrasam o primeiro alerta.

“O que eu posso te dizer que a gente começa a diagnosticar aqui, na Amazônia, em torno de 6 a 7 anos. O ideal é que esse diagnóstico venha quando surgem os sintomas, essas características, que aparecem até os 3 anos. Só que a gente só consegue muitas vezes esse diagnóstico tardio por termos uma cobertura muito baixa de creche, temos uma cobertura ainda não adequada de educação infantil. E aí quando essa criança chega para a gente no primeiro ano do ensino fundamental com 6 anos, quem dá o alerta é o professor.”

A dificuldade de acesso é intensificada pelas longas distâncias e a logística complexa da região amazônica. O Pará, por exemplo, possui desde 2020 a Política Estadual de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (PEPTEA), que instituiu ações como a criação do Centro Especializado em Transtorno do Espectro Autista do Estado (Cetea) e os Núcleos de Atendimento ao Transtorno do Espectro Autista (Nateas), visando descentralizar o atendimento. Os municípios de Belém, Tucuruí, Capanema, Santo Antônio do Tauá e Marabá já contam com Nateas, e as próximas entregas previstas serão em Santarém, Altamira e Breves. Mesmo assim, as longas distâncias, a logística de transporte, situação socioeconômica e até questões culturais ainda são barreiras na universalização da assistência, deixando comunidades tradicionais e ribeirinhas isoladas.

Dra. Flávia Marçal: advogada, pesquisadora, ativista, mãe atípica e superintendente da Primeira Infância de Belém.
📷 Dra. Flávia Marçal: advogada, pesquisadora, ativista, mãe atípica e superintendente da Primeira Infância de Belém. |Thiago Sarame

“Existe uma recomendação sobre a criação de creches de qualidade para as crianças de 0 a 3 anos, que ela pode ter impactos positivos no restante da vida dessa criança, inclusive com melhorias no processo de aprendizagem”, explica Flávia. “Como você pode criar essa creche em uma comunidade ribeirinha que não tem energia elétrica? Aí eu te pergunto, você já parou para pensar como é que a gente vai fazer para que essas ribeirinhas de um aninho cheguem na creche? Você vai fazer o quê? Vai colocar no barco sozinha, com aninho, e vai levar pra creche? Como que você pensa isso?”.

“Você pensar isso aqui no centro da cidade é uma coisa. Você pensar isso com as populações ribeirinhas é outra totalmente diferente. Então, quando a gente fala dos desafios da Amazônia, esse tipo de situação, como é que eu faço? Você tem que também entender essa multiculturalidade, porque se você chegar para uma comunidade tradicional indígena, por exemplo, e você dizer que a gente vai pegar as criancinhas de 2 a 4 anos e vai levar para uma creche, eles dizem ‘negativo’, porque até a primeira infância para comunidade indígena, as crianças ficam com a comunidade. Elas são ensinadas pela comunidade. Então você tem que entender toda essa multiculturalidade para você poder fazer esse acolhimento”.

O peso da culpa e o medo pelos filhos

As dificuldades de enfrentar o diagnóstico de TEA nunca são fáceis. Evellyn Barreto, pedagoga e mãe de um casal de gêmeos, vivenciou essa questão quando ouviu do pediatra de seu filho Heitor que ele era uma criança autista.

“O Heitor ficou na UTI dois meses porque ele teve enteropolite necrosante (inflamação grave do revestimento do intestino). Hoje em dia, estudando mais, a gente sabe que o intestino tem tudo a ver com TEA. Mas na época não fazia muito sentido para mim. Então, o autismo já estava ali, e a gente não sabia”, afirmou Evellyn. O diagnóstico só veio dois anos e meio depois, quando ela foi investigar a fixação e habilidade do filho com números e letras, identificados depois como hiperfoco e alta dotação.

Evellyn Barreto com os brinquedos do filho Heitor, de 5 anos: da dor do diagnóstico aos grupos de acolhimento de mães atípicas.
📷 Evellyn Barreto com os brinquedos do filho Heitor, de 5 anos: da dor do diagnóstico aos grupos de acolhimento de mães atípicas. |Cristiano Pantoja

“Mãe sempre sabe, né? Não quero desmerecer os pais nem os outros familiares, mas a mãe sempre sabe. Bom, então fui investigar. A pediatra foi uma pessoa muito importante pra gente, porque ela atentou aos nossos cuidados, ela ouviu a família e aí a gente conseguiu investigar.”

A lentidão do sistema público para oferecer o laudo necessário, entretanto, leva muitas famílias, que podem pagar, a buscar o atendimento particular. “Aí, nesse momento, a gente precisou pagar, né? E não é barato. A gente precisou pagar esse especialista porque ia demorar muito”, afirmou Evellyn. “O atendimento pelo SUS chega, só que pode demorar ano. A minha antiga secretária, o neto dela é TEA e ele tá há 2 anos esperando atendimento. ”

O diagnóstico, mesmo esperado, traz consigo um impacto emocional avassalador. Evellyn não escapou do luto e do medo que acompanham a parentalidade atípica.

“Quando você recebe um laudo… a gente já sabia, mas é diferente. Dói. Acho que vivi menos, porque eu já convivi com outras mães que não aceitaram até hoje, mas dói e dói muito. Tem dias que eu me pego também chorando, porque ninguém pede para ter um filho deficiente. Essa é a verdade. Ninguém diz ‘Deus, eu gostaria de ter um filho deficiente’. Ninguém pede”, completou, descrevendo o medo constante: “Nosso medo é nosso filho sofrer algum tipo de violência. Isso daí é fato.”

Agora com cinco anos, Heitor foi diagnosticado com TEA quando tinha apenas 2,5 anos.
📷 Agora com cinco anos, Heitor foi diagnosticado com TEA quando tinha apenas 2,5 anos. |Arquivo pessoal

Para muitas mães, o medo se reflete em realidade e estresse quando o filho entra em novas etapas da vida, como o início da vida escolar, gerando uma sobrecarga ainda maior na maternidade. “Eu tive problemas com uma escola, porque existe um plano educacional individualizado, que é lei, um documento que toda autista precisa ter, que é adaptação escolar. Mesmo meu filho sendo nível um de suporte, tem a sensibilidade, tem superdotação, e a escola precisa adaptar, né? A escola me negou de toda forma, foi bem difícil. Eu falei com meu marido que eu quase perdi o meu réu primário, porque você fica indignado com a lei que não está sendo cumprida.”, descreveu, falando sobre o custo pessoal desse desgaste: “Eu já cheguei a não querer sair da cama, a chorar o dia inteiro. Já quis brigar também nos lugares por conta da inclusão. É bem ruim, é muito ruim. Nosso medo é todo esse preconceito,da sociedade em cima dele, violência física, verbal”.

Evellyn ainda enfrenta outra questão. Muitas vezes vivendo o foco no cuidado integral de Heitor, especialmente em momentos de doença, levou Evellyn a se sentir culpada por negligenciar a gêmea do filho, Clarice, ambos hoje com cinco anos.

“Eu te confesso que em momentos em que o Heitor adoeceu, o meu cuidado foi muito maior com ele, porque eu já fiquei muito tempo com ele na UTI. Então eu meio que deixei ela ali de lado, e isso é uma culpa materna também. Foi difícil”, conta Evellyn. “Recentemente ela teve o diagnóstico da superdotação, então é tenso, porque são muitos questionamentos, muita pergunta fora da curva dos dois, são duas demandas diferentes para lidar”.

Evellyn com o marido e o casal de gêmeos: entre o autismo e a superdotação, estresse e terapia que chegaram a virar culpa para a mãe. Arquivo pessoal

Nessa batalha diárioa, terapia e rede de apoio são fundamentais não só no cuidado da criança, mas para o autocuidado da mãe, um aspecto que muitas famílias negligenciam. Levando o filho para começar a terapia, passou a ouvir histórias e conviver com outras mães, até criar a noção de que ela também poderia se beneficiar do acompanhamento psicológico.

“A minha irmã é a maior incentivadora para que eu fizesse terapia. E quando ela diz, 'Mana, você quer sair? Pode sair que eu fico com as crianças'. Então, assim, toda a família se aprofundou no assunto. Porque o Heitor precisava conviver em sociedade. A família ali é o primeiro momento para eles”, afirmou. “Terapia salvou vidas. Meu filho teve um diagnóstico precoce, e isso é extremamente importante. A gente pensa na família, mas a gente pensa muito mais na criança, no desenvolvimento.”

Quem cuida dos cuidadores?

“Eu tenho acumulado alguns anos de pesquisa sobre os cuidadores. Sempre me preocupou muito como é essa pessoa que cuida das crianças, das pessoas com deficiência. Porque muito dos sucessos ou dos fracassos, se é que a gente pode chamar assim, no desenvolvimento dessas crianças, depende de quem tá ali diariamente”.

Professora de psicologia na Universidade Federal do Pará (UFPA), a dra Simone Silva desenvolve desde 2013 uma série de pesquisas com cuidadores primários de crianças PCDs no contexto da Amazônia. Pelos seus estudos, ela identificou que o estresse vivenciado por essas mães atinge níveis clínicos. A sobrecarga resulta da conjugação da alta demanda de cuidado do TEA com a pobreza e a ineficiência logística.

“Eu te diria que a gente tem uma marca que nos diferencia muito nacionalmente, que é a questão da pobreza. É importante falar disso, porque isso sempre aparece quando a gente olha para o cuidador, para a pessoa com deficiência, quando a gente pensa na rede de cuidado que é oferecida”, afirma Simone. “Tem que lembrar que, além de todos os desafios específicos da parentalidade atípica, que essa criança traz e demanda, tu ainda estás lidando com uma população que majoritariamente é pobre, vulnerável”.

Em sua pesquisa, Simone identificou que muitas famílias dependem exclusivamente do pagamento de benefícios, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC), auxílio financeiro do governo federal no valor de um salário mínimo, mas que é pago apenas para cuidadores primários que ficam com a família em tempo integral.

“As mães, em geral, se submetem porque elas têm medo de não conseguir um trabalho que dê a elas um recurso maior do que o que o BPC dá. Então a competitividade dessa pessoa se torna muito limitada. Não é uma pessoa que tem uma formação superior, uma especialização. Não faz algo para garantir um um honorários bem pagos. São pessoas comuns, mas que poderiam estar executando funções e conectando elas com o mundo. Só que se elas fizerem isso, elas perdem o benefício”, explica Simone.

Dra Simone Silva; anos pesquisando o estresse sobre os cuidadores primários de crianças PCD na Amazônia.
📷 Dra Simone Silva; anos pesquisando o estresse sobre os cuidadores primários de crianças PCD na Amazônia. |Thiago Sarame

Junto com a situação econômica da região, outro problema é claro quando se fala de cuidadores na Amazônia: lidar com as vastas distâncias, principalmente quando se fala de famílias que moram no interior, onde muitas vezes não há oferta de serviços. Como buscar atendimento quando o deslocamento entre a casa e o centro pode demorar horas?

“Eu acho que eles estão mais estressados quando a gente compara Belém e o interior, a rede de serviços no interior é muito mais precária do que o que é aqui. Isso se torna muito pior quando tu pensas que vem uma criança lá de Barcarena, e Abaetetuba, de Cametá, receber atendimento aqui em Belém uma vez na semana”, explica Simone. “Toda semana, com uma criança que às vezes não anda, quando entra dentro de um transporte e vê aquele monte de gente, as vezes passa a viagem toda reclamando. Pensa o quanto isso exige dessa criança e desse cuidador”.

“Crianças seriamente comprometidas, que não suportam ruído intenso ou toque, que acordam 4h30 e se deslocam por horas, pegando esse trânsito difícil, para chegar num atendimento especializado e ter 30 minutos de atendimento. O profissional mal começa a atender, já acabou”, continua Simone. “Estudos internacionais mostrando que não existe um método melhor do que o outro. O que existe é o tempo de duração que o profissional tem com aquela criança. Então, o profissional que é pago para atender 30 minutos não consegue fazer muita coisa. Ele pode ter até uma boa formação, usado o melhor método, mas as condições que são dadas a ele, e eu estou falando do tempo disponibilizado, não permite a ele contribuir muito com o desenvolvimento daquela criança.”.

Esse ritmo leva ao adoecimento físico e mental do cuidador. E um dos danos mais invisibilizados é a privação crônica de sono. “Em geral, a marca, o que diferencia essa parentalidade especial é a sobrecarga. Então, essas pessoas estão muito adoecidas, seja fisicamente porque precisam carregar o filho quando se trata de uma criança com dificuldade de deslocamento, seja mental mesmo, né, de lidar com esse outro que às vezes tem dificuldade de compreender, de ter noção de limite”, continua Simone.

“E o impacto do sono no bem-estar das pessoas. E aí a gente vê os pais de pessoas típicas dizendo 'Ah, eu não durmo há seis meses uma noite inteira’, enquanto existem mães que não dormem uma noite inteira há 20 anos. Como é que alguém que não dorme há anos consegue ser suporte para aquela criança com deficiência?”.

A pesquisa também indicou que o fator que mais eleva o estresse não é a dificuldade física, mas sim as alterações comportamentais da criança, muito comuns no TEA, o que pode levar à questões psicológicas sérias, como isolamento e depressão. “A pessoa que é mãe de uma criança com alteração comportamental está muito mais sobrecarregada do que aquela que foi difícil se deslocar, mas que está estável comportamentalmente, emocionalmente”, afirma. “As famílias de pessoas com deficiência vão se isolando, se fechando no seu próprio mundo, se fechando no ambiente doméstico. E isso contribui junto com todos aqueles outros fatores ao adoecimento, depressão, com a ansiedade.”

Os desafios e o alto estresse da primeira infância atípica na Amazônia
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Ela ainda aponta que a sobrecarga do cuidado das crianças na Amazônia recai quase sempre sobre a mãe, que também precisa de cuidados. “O que a gente nas pesquisas é que em 55% dessas famílias, os pais não aguentam e abandonam essa família, aí fica uma família de de mãe solo. E eu te diria que 80%, 90% dos casos, mesmo as famílias que o pai não abandona, o cuidado ainda é dispensado pela figura materna, com o pai assumindo uma função só de provedor financeiro”, explica.

Outra questão importante é que não só a família e rede de apoio direta das crianças precisam de atenção. Profissionais de saúde e professores também estão expostos a graus de estresse no atendimento e convívio com crianças que precisam de uma carga maior de suporte.

“A gente perguntou às famílias 'quem é a sua principal rede de apoio? Quem você mais, com quem você mais pode contar ou com quem você gostaria de contar?' E tu sabes o que elas dizem? A maioria delas falam dos profissionais. Então isso mostra um lugar de centralidade que tem os profissionais na vida das famílias, não só na vida de uma pessoa com deficiência. E isso mostra a importância que eles têm e o quanto que eles precisam estar em condições de responder a essa demanda que é trazida por essas famílias”, explica Simone.

“Pensa numa pessoa que lida com a morte, que atende pessoas, pacientes terminais, o quanto isso é terrível. Essa carga não é menos terrível, é só diferente para aquele aquele profissional que atende pessoas com deficiência, que na maioria das vezes sabe que a expectativa ali de desenvolvimento é muito limitada. Lidar com limites, seja pensando na morte ou no desenvolvimento, é algo muito difícil. E estar ali em pé recebendo não só essa criança, mas também aquela mãe, que talvez mais do que a própria pessoa com deficiência, sabe de todas as implicações da condição do seu filho e ter que dar apoio.”

Nesse contexto de complexidade, a própria universidade pode ajudar no enfrentamento do problema. Através de programas de pesquisa e extensão, as instituições de ensino buscam oferecer atendimento e ajudar em demandas difíceis de serem atendidas.

“A UFPA precisa intervir e transformar o que a gente produz na pesquisa em serviço que dê alguma qualidade. Então além da pesquisa com a essa população, a gente tem desenvolvido ações mesmo concretas e medindo o impacto da nossa ação de acolhimento, de discussão com os profissionais e com os cuidadores e vendo o efeito. Então, a gente tá olhando o efeito da ação, a gente tá muito nessa linha, sabe?”, afirma Simone. “Apesar da de às vezes a gente ser criticado que ficamos dentro do nosso muro, existe uma política interna de que a gente propõe ações de extensão que leve o nosso conhecimento que a gente tá produzindo aqui para fora, gerando qualidade de vida e saúde mental”.

“Em outros contextos mais desenvolvidos, que tenha mais apoio financeiro do país, como a região Sudeste, em que tem um percentual maior revestido na pesquisa, provavelmente nesses contextos, eles consigam gerar, produzir ações mais contínuas do que a gente aqui que vive numa situação financeira mais difícil”.

“O estado precisa olhar para essa complexidade. Essa mãe precisa de cuidado, de apoio e o profissional também para poder fazer a sua função.” Ela também ressaltou que os profissionais de saúde e os professores na linha de frente não foram formados para acolher a complexidade da família e da deficiência. “Os professores não foram formados ainda. E a gente tá falando isso já tem alguns anos. Desde que promulgaram a lei de inclusão (2015), a gente está dizendo da necessidade de formar esses profissionais. A formação deve ir além da legislação, ensinando a identificar as fragilidades e as forças da criança com deficiência.”

Amazônia é uma aldeia

Diante do alto estresse e da invisibilidade, a rede de apoio das famílias de crianças com TEA se torna uma luz para muitas pessoas. Grupos de apoio como o Mundo Azul, um dos maiores coletivos de mães de autistas do Pará, com cerca de 300 integrantes, se tornam essenciais, oferecendo acolhimento e troca de informações.

“Eu estou há 4 anos no grupo e sou muito bem acolhida, e também faço o acolhimento. É como se fosse um ‘CVV’. A gente disponibiliza o tempo, e uma vez por mês fazemos o nosso encontro. E isso eu falo para todo mundo, que a gente precisa se encontrar, mas não é para falar do autismo, é para falar da mulher, para falar da mãe, para falar da nossa vida. E isso assim melhora a minha vida todo mês”, explica Evellyn. Foi no Mundo Azul que ela conheceu a dra. Flávia Marçal, uma das co-fundadoras do grupo. Para as duas, a rede de apoio é essencial, especialmente quando se fala de crianças com níveis de suporte 2 ou 3, como é o filho de Flávia.

“Há um processo de criminalizar as mães e dizer que as mães não podem falar porque elas não são autistas, que elas não sabem o que é ser autistas. E aí eu sempre digo isso quando uma pessoa diz assim: 'Ah, porque nessa mesa não tem nenhum autista e tem mães de pessoas com autismo'. É muito doloroso porque essa pessoa não sabe a dor. A dor que é pra gente ter que falar pelos nossos filhos”, afirma Flávia.

“Se uma mãe de nível 3 de suporte pudesse escolher não falar pelo seu filho, não tem que defender o autismo e ter o filho dela se defendendo, ela não pensaria duas vezes. Mas se a gente não falar pelos nossos filhos, se a gente não falar dos desafios dos autistas de nível de suporte dois e três, ninguém vai falar e eles vão ser invisibilizados”.

“A maioria das mães que estão no grupo do Mundo Azul são mães de autistas de nível de suporte dois e três. A gente entende que são essas mulheres que precisam do maior suporte, do maior acolhimento possível”, continua Flávia. “Eu acho que a parentalidade na Amazônia tem esse diferencial, porque aqui você ainda tem famílias mais extensas, tem essa coisa de que todo mundo se conhece. Nós somos uma população muito mais acolhedora. Eu acho que essa noção de aldeia que vem de comunidades indígenas é um fato pra gente”.

“Na época do Círio de Nazaré (procissão religiosa que reúne cerca de 2,5 milhões de pessoas em Belém), por exemplo, você tem mais de 100 mil crianças dentro de uma procissão, e a gente nunca teve em toda a história uma criança que tenha se perdido, que tenha sido sequestrada, porque se aquela criança se perder, alguém vai tomar conta dela, chamar a defesa civil. A comunidade vai cuidar daquela criança, né? E esse é um ponto muito positivo. Acho que isso é muito próprio daqui da Amazônia, esse olhar de cuidado, de comunidade. Mas ao mesmo tempo a gente precisa conseguir fazer isso de uma forma estruturada.”

A sua própria trajetória como mãe de Matheus, que aos 15 anos não é alfabetizado, a levou a lutar de forma estruturada para que a intervenção comece na primeira infância, dando mais autonomia para os autistas mais comprometidos.

“O que a gente luta hoje com famílias atípicas não é para que se cure o autismo, mas que você garanta que essa pessoa que conviva com o autismo, até porque o autismo não tem cura. A melhor chance que a gente tinha era a intervenção precoce, porque se eu conseguisse fazer uma intervenção precoce, adequada para as pessoas com autismo, se elas tivessem a garantia dessa intervenção precoce, um ambiente favorável para essa mudança da nossa neuroplasticidade, elas ganhariam mais autonomia para que elas possam ter liberdade, para que elas vivam uma vida feliz”, termina Flávia.

* Esta reportagem recebeu apoio do programa “Early Childhood Reporting Fellowship”, do Global Center for Journalism and Trauma.

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