
Independentemente da modalidade, a prática esportiva tornou-se parte fundamental da rotina da maioria das pessoas. Seja como praticante ou apenas como fã, o esporte exerce um papel social indispensável em qualquer comunidade organizada. No entanto, nas últimas décadas, as transformações no clima passaram a influenciar diretamente a forma como competições e os torneios são organizados ao longo do ano.
Um exemplo recente é a edição da Copa do Mundo de Clubes da FIFA, realizada nos Estados Unidos. Entre temperaturas elevadas e alertas de tempestade, diversas partidas foram marcadas por críticas de jogadores, técnicos e espectadores quanto às condições em que os confrontos ocorreram. Até o fim da fase de grupos, quatro jogos precisaram ser interrompidos devido a alertas meteorológicos de tempestades próximas aos estádios.
Essas interrupções ilustram apenas uma parte dos vários episódios em que os efeitos da crise climática vêm causando no universo esportivo globalmente. As ondas de calor, consequência direta do aquecimento da Terra provocado pela ação humana, já afetam o cenário esportivo há pelo menos 10 anos, com repercussões notórias em competições de tênis e até nas últimas duas Olimpíadas (Tóquio 2020 e Paris 2024).
Desafios para o cronograma esportivo
As alterações climáticas têm provocado mudanças significativas nos cronogramas de diversas práticas atléticas, exigindo adaptações frequentes. A intensificação de eventos extremos como altas temperaturas, chuvas torrenciais e secas prolongadas têm levado ao adiamento, cancelamento ou até mesmo realocação de campeonatos. Além disso, essas condições adversas influenciam diretamente o rendimento dos competidores.
Durante os Jogos Olímpicos de 2020, realizados no Japão, as provas de maratona e marcha atlética precisaram ser deslocadas de Tóquio para Sapporo, no norte do país, onde se esperava clima mais ameno. Contudo, mesmo com a mudança de cidade e as largadas ocorrendo nas primeiras horas do dia, os termômetros marcaram em torno de 30 °C.

Os Jogos Olímpicos de Inverno também vêm enfrentando dificuldades há anos. Em Pequim-2022, a realização das disputas só foi possível graças à neve artificial. O mesmo deve ocorrer na Itália, sede da próxima edição, onde 90% das estações de esqui dependem da produção de neve sintética.

No fim de 2024, uma etapa da Copa do Mundo de esqui, prevista para acontecer no Canadá, foi cancelada por falta de neve — o que também afetou outros campeonatos. Segundo o Comitê Olímpico Internacional (COI), até meados do século XXI, apenas cerca de 10 a 12 nações terão condições climáticas adequadas para sediar os Jogos de Inverno.
No caso do futebol, o primeiro impacto climático relevante no calendário da FIFA ocorreu em 2022. A Copa do Mundo, tradicionalmente disputada entre junho e julho, precisou ser remarcada para os meses de novembro e dezembro por conta das temperaturas extremas no Catar, que chegavam a superar os 40 °C durante o verão.
O mesmo cenário está previsto para a Copa de 2034, na Arábia Saudita. Embora as temperaturas no verão local possam ultrapassar os 40 °C, a FIFA já alertou para o “risco elevado” em relação para a necessidade de ajustes no cronograma, mencionando tanto as condições ambientais quanto possíveis conflitos com datas religiosas.
Saúde de atletas e torcedores em risco
Durante os Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, as altas temperaturas causaram sérios problemas aos atletas, entre os que mais sofreram foram os tenistas. A espanhola Paula Badosa chegou a desmaiar por conta do calor intenso e precisou deixar a quadra em uma cadeira de rodas. Já o russo Daniil Medvedev solicitou atendimento médico duas vezes durante as quartas de final do torneio individual masculino. Em um momento tenso, ele se dirigiu aos árbitros e questionou: “Posso terminar a partida, mas posso morrer. Se eu morrer, vocês serão os responsáveis?”. A cazaque Zarina Diyas também não resistiu às condições extremas e abandonou a disputa antes do fim.
O US Open de 2023 acendeu um novo sinal de alerta: as temperaturas nas quadras passaram dos 35°C, colocando novamente em risco a saúde dos atletas. Daniil Medvedev, já conhecido por criticar duramente as partidas sob calor excessivo, voltou a se manifestar durante o confronto: “Um jogador vai morrer, e então eles verão.” Os tenistas demonstravam sinais evidentes de exaustão — respirando com dificuldade, suando intensamente e enfrentando desafios físicos para concluir os jogos. Apesar das pausas médicas, o clima era insuportável, o que levou os organizadores a ampliar os intervalos entre os sets e instalar áreas sombreadas para descanso.

Mais recentemente, os efeitos do calor voltaram a ser sentidos na Copa do Mundo de Clubes. Após o duelo entre Paris Saint-Germain e Atlético de Madrid, realizado ao meio-dia em Los Angeles, o técnico Luis Enrique, do clube francês, comentou que “a partida foi claramente influenciada pela temperatura" e que “o horário é ótimo para o público europeu, mas os times estão sofrendo.”
No mesmo torneio, o Borussia Dortmund relatou nas redes sociais uma medida inédita tomada durante a partida no Estádio TQL, em Cincinnati. “Nossos reservas assistiram o primeiro tempo de dentro do vestiário para evitar o sol escaldante — nunca vimos isso antes, mas com esse calor, faz todo sentido", comentou.
Após a partida de estreia, o meio-campista Marcos Llorente, do Atlético de Madrid, compartilhou sua experiência com um desconforto evidente. “É impossível, um calor horrível. Meus dedos dos pés estavam doloridos, minhas unhas doíam, eu não conseguia frear nem arrancar. É inacreditável, mas como é igual para todos, igual para todos… Não há do que reclamar", comentou ele.

As reclamações justificam um estudo inédito lançado às vésperas do início do torneio mundial, no qual revelou que todos os 32 clubes participantes estão expostos a riscos climáticos severos nos próximos 25 anos. A ameaça era crítica para 29 deles (91%), de acordo com o relatório divulgado pelo Terra FC — coalizão global entre clubes, grupos comunitários e sociedade civil para mobilizar o futebol em prol do meio ambiente — e realizado pela consultoria ERM (Environmental Resources Management).
“Trata-se de uma exposição desnecessária e que oferece riscos para o estado de saúde do atleta, pois a literatura científica vem apontando que a prática de esportes em dias de alta temperatura provoca desidratação, alteração do equilíbrio hidroeletrolítico e dificuldade de efetuar a termorregulação, entre outros, podendo acarretar insuficiência renal e circulatória. Parece óbvio que, além dos malefícios para a saúde, um atleta exposto a tais condições sofrerá prejuízos ligados ao seu desempenho, diminuindo o poder de espetáculo ligado ao esporte. Então, as reclamações dos atletas relativas ao tema, de fato, importam ou são consideradas?”, questiona o coordenador de Esporte e Lazer da Universidade Federal do Pará (UFPA), Douglas Dias.
O especialista aponta também que além do calor extremo, as tempestades impactam tanto na qualidade do jogo, como expõe os atletas a riscos graves de lesões. “Condições extremas de temperatura e fortes chuvas podem impactar a saúde e o rendimento dos atletas, principalmente em ambientes ao ar livre, como é o caso de um estádio de futebol. Um gramado de futebol que não possua drenagem capaz de escoar satisfatoriamente a água da chuva, acaba expondo o atleta a um maior risco de lesão muscular ou ligamentar, por exemplo. Ginásios que não sejam climatizados ou bem ventilados, acabam aumentando a sensação térmica de calor em dias de alta temperatura, e isso pode prejudicar a saúde e o rendimento do atleta”, alerta o coordenador de Esporte e Lazer da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Douglas Dias ainda ressalta que a Copa do Mundo de Clubes da FIFA é um exemplo de que os organizadores de eventos esportivos priorizam questões mercadológicas em detrimento do bem-estar do atleta “O que justifica que dos 63 jogos a serem disputados, 35 ocorram antes das 17h, e 15 iniciem meio-dia, sempre no horário local, senão questões mercadológicas e a procura de maior audiência da transmissão de tv ou mesmo streaming, considerando as diferenças de fuso horário relativas ao continente europeu? Criar uma parada para hidratação em cada tempo da partida só ameniza a exposição e eventuais impactos para a saúde dos atletas”, pontua ele.
O coordenador universitário finaliza argumentando que o cenário não parece animador. Os impactos para a saúde e o rendimento tendem a ser mais agudos. “Talvez não pelo planeta, mas apenas pelo lucro, haja algum movimento em defesa do meio ambiente e do nosso planeta”, analisou.
Necessidade de adaptação
Para mudar esse cenário, a consultora ambiental Tainá Rauber reforça a necessidade do setor esportivo se adaptar para garantir a segurança e o bem-estar dos atletas profissionais, amadores e do público. “Uma das principais estratégias é a readequação dos horários e os calendários de competições, priorizando os períodos mais frescos do dia, como as primeiras horas da manhã ou o fim da tarde à noite, a fim de reduzir o risco de insolação e exaustão térmica”, recomenda.
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Segundo a especialista, ações emergenciais são necessárias para conter o estresse térmico que vem assolando os atletas e o público em geral, motivo das maiores reclamações em torno das competições realizadas em situações climáticas extremas.
“O estresse térmico ocorre quando o corpo humano é exposto a temperaturas elevadas e não consegue dissipar o calor de forma eficiente, comprometendo a sua capacidade de manter a temperatura interna estável. Esse calor é intenso e ocasiona um aumento expressivo e progressivo nas internações por desidratação, insolação e agravamento de doenças cardiovasculares. Nesse contexto, o calor intenso não apenas coloca em risco a saúde física, mas também compromete a produtividade e o bem-estar emocional”, alerta Tainá Raube.
Paradoxo climático-esportivo e desigualdades históricas
As mudanças climáticas não afetam apenas os esportes de alto rendimento, mas impactam diretamente nas vertentes educacionais da prática esportiva. O professor de Educação Física e doutor em Educação pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Adnelson Araújo, explica que o aumento das temperaturas, a intensificação de eventos extremos como chuvas intensas, secas prolongadas e ondas de calor, além da degradação ambiental, impactam diretamente nas condições físicas e sociais para a prática esportiva.
“Isso nos leva a refletir sobre uma nova perspectiva: além de afetar o ambiente onde o esporte acontece, a crise climática aprofunda desigualdades históricas de acesso e participação, principalmente entre os grupos mais vulneráveis. É nesse contexto que se desenvolve o conceito de paradoxo climático-esportivo, que trata justamente dessa contradição — os efeitos do clima se tornam mais severos sobre aqueles que têm menos recursos para enfrentá-los”, explica.
O professor relata que em cidades como Belém(PA), na região amazônica, as altas temperaturas e o forte índice de radiação solar, combinados com chuvas intensas e frequentes, dificultam a realização de aulas de Educação Física ao ar livre, por exemplo. “Muitas dessas escolas não possuem quadras cobertas ou espaços adequados para atividades esportivas durante todo o ano. O resultado é a limitação da vivência corporal e esportiva de crianças, adolescentes e jovens, especialmente nos horários mais críticos do dia. Isso demonstra como as alterações climáticas, associadas à precariedade da infraestrutura escolar, restringem o direito ao esporte e acentuam desigualdades já existentes”, avalia o doutor em Educação.

Mesmo no esporte de rendimento, que em tese conta com mais estrutura e planejamento, os impactos ambientais também são visíveis. No Pará, por exemplo, clubes de futebol enfrentam dificuldades durante o Campeonato Paraense, realizado justamente no período de maior volume de chuvas. Com gramados alagados e treinos prejudicados, o desempenho das equipes é comprometido. “As categorias de base sofrem ainda mais: sem centros de treinamento cobertos, perdem semanas inteiras de preparação ao longo do ano”, afirma Adnelson Araújo.
Logo, o professor conclui que esporte, meio ambiente e mudanças climáticas, estão profundamente interligados — e essa relação revela, de forma cada vez mais clara, as desigualdades sociais. “O conceito de paradoxo climático-esportivo contribui para compreender como a crise ambiental não atinge a todos igualmente, penalizando especialmente os que têm menor acesso a infraestrutura, menos recursos para adaptação e menor visibilidade para reivindicar condições mais justas”, finaliza.
Impactos no futebol brasileiro
No último dia 30 de junho de 2025, outro relatório divulgado pelo Terra FC e realizado pela consultoria ERM, traz uma análise de como as mudanças climáticas podem afetar o esporte mais amado do planeta e os efeitos imediatos de eventos climáticos extremos nos principais clubes brasileiros, mais precisamente nos 60 clubes que disputam as Séries A, B e C e suas 40 cidades-sede.
Segundo o relatório, 78% (47 de 60) dos clubes de futebol brasileiros das Séries A, B e C estão em municípios com alto risco de eventos climáticos severos (enchentes, inundações, ondas de calor, queimadas e secas) nos próximos 25 anos.
Ainda de acordo com o relatório, os clubes que enfrentam os maiores riscos de vários tipos de eventos climáticos severos são Flamengo, Fluminense, Botafogo e Vasco da Gama (do Rio de Janeiro), Athletic Club (de São João del Rei, Minas Gerais), Paysandu e Remo (de Belém, Pará, sede da próxima Conferência do Clima da ONU, COP 30, em novembro de 2025).
O estudo também alerta que 67% (40 de 60) dos clubes têm vulnerabilidade crítica a enchentes em seus principais estádios devido à proximidade de corpos d'água, densidade urbana e drenagem precária, correndo o risco de repetir a devastação ocorrida no Rio Grande do Sul em 2024.
Tais eventos climáticos extremos podem gerar um impacto, em valor total, de R$ 68,8 bilhões (US$ 10,45 bilhões) em 25 anos nos 60 times das Séries A, B e C. Desses, 55% (33 times) correm o risco de perder mais de 10% de seu valor de mercado. Para os times de divisões inferiores, o impacto é mais drástico: 40% dos clubes da Série C correm o risco de perder mais de 50% de seu valor de mercado nos próximos 25 anos, potencialmente ameaçando a viabilidade desses clubes, segundo apontou o relatório divulgado pelo Terra FC e realizado pela consultoria ERM.
Ainda de acordo com o levantamento, considerando apenas o risco de enchentes para os 60 clubes, os custos totais estimados para reparo de infraestrutura, logística e perda de receita são projetados em R$ 2,91 bilhões (aproximadamente US$ 500 milhões) nos próximos 25 anos.
“Em 2024, vimos tragédias no Sul do Brasil que afetaram diretamente a população e também os clubes da região. As queimadas no segundo semestre causaram a interrupção de jogos, com atletas e torcedores passando mal. Esses eventos mostram como as crises climáticas já estão interferindo na prática esportiva, além de, é claro, na saúde pública. Acreditamos que os clubes podem engajar seus torcedores usando a voz dos craques e influenciadores, mostrando que cada um pode fazer sua parte. Ao mesmo tempo, é essencial debater políticas públicas, repensar a infraestrutura no entorno dos estádios – como já ocorre no Morumbi e no Maracanã – e ajustar o calendário e os horários dos jogos, considerando as condições extremas que colocam em risco jogadores e torcedores”, afirmou Ricardo Calçado, diretor do Terra FC.
"Ainda que seja improvável que todos os efeitos negativos potenciais se concretizem simultaneamente, apenas um evento extremo – e vêm acontecendo com maior frequência e intensidade – é suficiente para desorganizar o fluxo de caixa de vários clubes – e, para algumas agremiações de divisões inferiores, torná-los inviáveis financeiramente", explica Fred Seifert, sócio da ERM.
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