Depois do atraso, da apreensão e dos imbróglios diplomáticos, a matéria-prima que vai permitir que o Brasil expanda sua campanha de vacinação contra o coronavírus finalmente começou a chegar ao país.

É o tão falado IFA (Insumo Farmacêutico Ativo), sigla industrial que está na boca do povo no último mês. Ele desembarcou na quarta (3) no Instituto Butantan, em São Paulo, e chegou neste sábado (5) à Fiocruz, no Rio de Janeiro.

Por enquanto, os dois laboratórios só estão usando insumos e imunizantes que já vieram prontos da China ou da Índia. No segundo semestre, porém, ambos planejam terminar de adaptar suas fábricas e começar a produzir suas próprias matérias-primas do zero.

Em resumo, o IFA é o principal ingrediente da receita. "Ele é o fermento que faz o bolo crescer. Sem ele, sobraria só farinha, açúcar e corante", metaforiza Norberto Prestes, presidente-executivo da Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi).

Cada vacina ou medicamento tem seu IFA, que também depende de outras substâncias para ser ingerido e fazer o corpo reagir. "Se eu não colocar os ingredientes certos, o fermento não vai funcionar. Não se toma um princípio ativo isolado", complementa Prestes.

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No caso dos medicamentos em geral, o IFA é feito do petróleo -que é transformado por um processo de química fina. Já os imunizantes têm como base elementos biológicos: o próprio vírus, por exemplo.

A Coronavac e a vacina da AstraZeneca/Oxford têm princípios ativos distintos, que são produzidos por empresas distintas, a Sinovac e a Wuxe, ambas na China. Os insumos, porém, passam por processos parecidos.

A primeira etapa é fazer o vírus se reproduzir. Para isso, ele é introduzido em células animais (de rim de macaco no caso da Coronavac). Essas células, por sua vez, também são introduzidas em um meio de cultura com nutrientes, sais e PH ideais para que se repliquem.

"A multiplicação da célula e do vírus acontecem ao mesmo tempo", explica Tiago Rocca, gerente de parcerias estratégicas do Butantan. "O vírus sempre vai precisar de uma célula hospedeira, quase sempre animal. Nas vacinas de influenza e de febre amarela, é o ovo embrionado. Na vacina de HPV ou hepatite, é um fungo."

Esse processo demanda o uso de biorreatores, grandes caldeirões que "cozinham" a substância e ainda estão sendo comprados pelos laboratórios. Eles são descartáveis, como um filtro de café: depois de produzir um lote de vacinas, a grande bolsa plástica é descontaminada, incinerada e trocada por uma nova.

É na próxima etapa que os IFAs da Coronavac e da vacina de Oxford se diferenciam. Como a primeira usa o próprio coronavírus como matéria-prima, precisa torná-lo inativo para que ele não infecte o ser humano quando for aplicado (por isso essa técnica se chama "vacina de vírus inativado").

A inativação é feita utilizando três fatores, segundo Rocca. A adição de agentes químicos, a regulação da temperatura e o tempo. Ele diz que o ciclo demora algumas horas, mas os detalhes não são divulgados por causa do contrato com a farmacêutica.

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Insumos da vacina de Oxford chegam ao Brasil para produção na FiocruzJá no caso da vacina da AstraZeneca, é usado um adenovírus de chimpanzé que não causa doença em humanos, por isso não é preciso inativá-lo. Ele é um "vetor viral" (outra técnica) inofensivo, que apenas carrega a proteína do coronavírus ao corpo.

Esse momento de lidar com um vírus vivo é extremamente delicado e exige uma série de medidas que impeçam que ele saia daquele ambiente, como vestiários especiais para trocar de roupa e ar-condicionados com filtros, adaptações que o Butantan está fazendo e a Fiocruz já possui.

A fase seguinte para chegar ao IFA é filtrar e purificar essa substância até que sobre apenas o vírus. Isso implica em remover todas as células, o meio de cultura em que elas foram inseridas e os elementos que elas produziram durante sua multiplicação.

Depois, são adicionados a essa matéria bruta os chamados adjuvantes, agentes químicos (hidróxido de alumínio, no caso da Coronavac) que "mostram" o antígeno para o sistema imune do corpo e o estimulam a produzir uma resposta.

"No nosso caso não usamos um transportador, existem algumas vacinas que usam uma molécula para proteger o princípio ativo", diz Rocco, do Butantan. "A nossa vacina tem ação sistêmica, ou seja, geral no corpo. Há vacinas, como o spray nasal, que começa a estimular os anticorpos primeiro no sistema respiratório."

Agora o IFA está pronto. As últimas etapas são dilui-lo em uma "água para injetáveis" (por isso poucos litros do princípio ativo podem produzir uma grande quantidade de doses), envasá-lo, rotulá-lo e inspecionar sua qualidade. Esses são os únicos processos que estão sendo feitos no Brasil por enquanto, até que a tecnologia seja importada.

Mas iniciativas brasileiras para desenvolver vacinas com um IFA 100% nacional estão em curso. Uma das mais avançadas é a da empresa Farmacore, em parceria com a americana PDS Biotech e a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP). Ela está finalizando a fase pré-clínica e deve começar o ensaio em humanos até junho.

"Usamos uma técnica mais simples porque não exige trabalho com vírus vivo nem inativado. Usamos um pedaço de uma proteína do coronavírus e um meio de cultura que não tem origem animal. Só exige biorreatores, que são fermentadores grandes", diz Helena Faccioli, diretora da Farmacore.

O país hoje só produz 5% de todos os insumos farmacêuticos que consome, percentual que era de 55% nos anos 1980. "O grande aprendizado da pandemia foi: é preciso investir sem interrupções para expandir e diversificar a produção. São 210 milhões de habitantes, não dá para sermos tão dependentes", diz Norberto Prestes, da Abiquifi.

Cada vacina ou medicamento tem seu IFA, que também depende de outras substâncias para ser ingerido e fazer o corpo reagir Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

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