"No fim, quem ficou preso para sempre embaixo da terra foi cada um de nossos companheiros". É assim, rememorando cenas de terror 25 anos depois do massacre de Eldorado do Carajás (PA), que a sobrevivente Zelzuíta Oliveira de Araújo, 58, resume o que classifica de marco da impunidade no campo.
Dos 155 policiais militares que participaram da ação para desbloquear a rodovia PA-150, no sudeste do Pará, que resultou no assassinato de 19 trabalhadores sem-terra, na tarde do dia 17 de abril de 1996, apenas 2 oficiais que comandaram a operação foram condenados.
Sem as condutas individualizadas por falhas na investigação e ausência de perícias importantes logo após os assassinatos, o restante dos policias acabou absolvido.
Uma perícia judicial apontou que, dos 19 mortos, 10 receberam tiros à queima-roupa pelas costas ou na cabeça. Alguns sobreviventes ainda ficaram mutilados.
Cerca de 1.100 sem-terra, que haviam saído em marcha de Curionópolis (PA) até Belém, tinham iniciado, no dia anterior, o bloqueio da rodovia.
Obedecendo a instruções do então governador do Pará, Almir Gabriel (PSDB), morto em 2013, os policiais foram enviados ao local para fazer a desobstrução da via. Os sem-terra resistiram. Além dos 19 mortos, pelo menos 60 pessoas foram feridas, entre trabalhadores rurais e PMs.
"Corri, desesperada, arrastando quatro crianças perdidas das mães vendo pedaços de cabeças de companheiros no chão, os miolos mesmo, o sangue derramando. Tudo isso para a Justiça condenar só duas pessoas. A impunidade venceu", diz Zelzuíta.
O sentimento da agricultora, que hoje mora no assentamento 17 de abril, em Eldorado do Carajás, é respaldado por levantamento da Comissão Pastoral da Terra. Os dados indicam o baixo número de condenações decorrentes de conflitos agrários no Brasil.
Durante 35 anos, de 1985 a 2020, 1.973 trabalhadores rurais foram assassinados em 1.496 disputas de terra. Desse total, apenas 122 casos foram julgados, o que corresponde a 6%, resultando na condenação de 35 mandantes e 105 executores dos crimes.
No caso de Eldorado do Carajás, após reviravoltas jurídicas e anulação do primeiro julgamento, que havia ocorrido em 1999, a Justiça sentenciou, em 2002, o coronel Mário Colares Pantoja, que comandava o 4º Batalhão de Polícia Militar, em Marabá (PA), a 228 anos de prisão.
O major José Maria Pereira de Oliveira, à frente na época de uma companhia independente da Polícia Militar do Pará, pegou 158 anos de prisão. Em ambos os casos, o placar do júri foi apertado: 4 a 3. No primeiro julgamento, eles tinham sido absolvidos.
Os dois, por força de um habeas corpus, só foram presos dez anos após a condenação, em 2012. Em 2018, alegando problemas de saúde, conseguiram cumprir pena em casa com tornozeleira eletrônica.
Pantoja morreu em novembro do ano passado em um hospital particular de Belém, em decorrência de complicações da Covid. Ele tinha hipertensão e problemas cardíacos.
O Tribunal de Justiça do Pará informou que José Maria Pereira de Oliveira se encontra em prisão domiciliar desde 18 de outubro de 2018. Também tem cardiopatia e sofre de pressão alta. Ele só pode sair de casa para realizar tratamento de saúde.
Durante agenda de campanha na eleição de 2018, o hoje presidente Jair Bolsonaro (sem partido) foi até a Curva do S, onde aconteceram os assassinatos, e defendeu os policiais que participaram da ação. Ele disse que os PMs reagiram para não morrer e que quem deveria estar na prisão eram os integrantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).
O promotor de Justiça Marco Aurélio Lima do Nascimento, que atuou nos dois julgamentos, diz que fez tudo que estava ao seu alcance para que os demais policiais fossem condenados. Ele destaca que os policiais retiraram a identificação do uniforme e que o local do crime não foi preservado devidamente.
"Ficou bastante difícil individualizar as condutas. Muitos policiais usaram armas particulares e armas brancas, que devem ter sido pegas dos próprios sem-terra. Houve execuções sumárias", afirma o promotor.
Lima do Nascimento explicou que não foi feita a chamada cautela do armamento oficial, que é o registro documentado quando o policial retira a arma do batalhão. "Isso também dificultou bastante o trabalho da acusação. Não se teve como fazer a comparação balística."
Para o promotor, a Justiça foi feita dentro das circunstâncias do caso. "O júri avaliou que não havia provas e inocentou os demais policiais. Muitos deles alegaram que não participaram diretamente, que ficaram nas margens da rodovia. Ninguém assumiu que atirou nos sem-terra."
O agricultor Raimundo dos Santos Gouveia, hoje presidente do assentamento 17 de abril, relembra que naquele dia correu para o mato junto com a esposa e os filhos pequenos para não morrer.
"Atiraram no nosso rumo. Um vizinho meu caiu morto no chão. O julgamento foi para nós um desastre. Não houve punição como deveria ser."
O advogado da Pastoral da Terra em Marabá, José Afonso Batista, destaca que não houve, na época, responsabilização do então governador Almir Gabriel nem do secretário de Segurança Pública à época, Paulo Sette Câmara, que também já morreu.
"Uma coisa ficou muito clara nesse processo. Pantoja não poderia ir por decisão própria dele. Era subordinado à autoridade. Ele não tomaria a decisão sozinho", diz Batista.
O advogado Roberto Lauria, que defendeu o coronel Pantoja nos dois julgamentos, destaca que o cliente teve a vida abreviada por uma responsabilidade penal que, segundo ele, nunca foi provada.
"Não houve ordem de comando ou orientação. Ele não era belicoso. Muito pelo contrário. Era uma pessoa de boa índole. Isso não é retórica de advogado", afirma.
Lauria diz que a polícia e o Ministério Público não tiveram a capacidade investigativa de encontrar os autores do crime. "Buscaram o caminho mais curto e mais fácil. É a lei do menor esforço. Houve dois massacres. Um real, na hora da situação, e um segundo que foi todo o processo."
Em decorrência da condenação, pontua o advogado, o coronel viveu seus últimos anos de vida com depressão profunda. "A única acusação contra ele foi a de ser o comandante de uma tropa."
Em seu interrogatório, Pantoja afirmou ao juiz que cumpriu ordens do governador e do comando-geral da PM para desocupar a estrada "de qualquer jeito". O governador admitiu que deu a ordem, mas negou que tenha autorizado o uso de força.
"A forma como todo o processo foi conduzido apontou para um resultado que não tinha como ser diferente. A impunidade foi garantida. Com uma investigação séria, era, sim, possível nominar todos aqueles que puxaram o gatilho", diz Afonso Batista.
Para o advogado da CPT, o massacre de Eldorado do Carajás é um dos principais marcos da violência no campo porque foi praticada pelos agentes do Estado. "Não é um crime de pistoleiros comuns. São agentes do Estado que deveriam investigar ou prevenir crimes."
O dirigente nacional do MST João Paulo Rodrigues avalia que após o massacre de Eldorado do Carajás o debate sobre a questão agrária mudou completamente no Brasil.
"Desde 1964, o debate estava interrompido. O massacre reabriu a discussão na sociedade sobre a questão agrária", afirma. Rodrigues diz que o episódio obrigou o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) a fazer o maior processo de reforma agrária do Brasil até aquele momento.
Neste sábado (17), trabalhadores rurais realizam vigília no local onde houve os assassinatos.
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