O Ministério da Saúde pagou R$ 193,4 milhões antecipados a uma empresa
intermediária responsável por fornecer máscaras chinesas no auge da
pandemia da Covid e não conseguiu comprovar o recebimento dos produtos.
O pagamento e a falta de comprovação foram apontados em um relatório de
auditoria da CGU (Controladoria-Geral da União). O documento foi
concluído em 4 de agosto e inserido no sistema de consulta pública de
auditorias em 22 de setembro deste ano.
É o mesmo relatório que apontou ausência de comprovação de entrega pelo
Ministério de Saúde de 4.816 respiradores a estados e municípios, como a
Folha mostrou no dia 5. Os equipamentos custaram R$ 273,3 milhões ao
governo Jair Bolsonaro.
No caso dos respiradores, os comprovantes de entrega eram uma
responsabilidade da VTCLog, empresa com contratos com o ministério e que
é investigada pela CPI da Covid no Senado. A companhia disse ter
entregue mais de 18 mil respiradores, com comprovantes.
As máscaras, por sua vez, foram compradas pelo governo Bolsonaro em
abril de 2020, em um momento em que a pandemia ganhava contornos cada
vez mais letais no país, em uma primeira fase crítica das infecções e
mortes.
O contrato teve o valor total de R$ 691,7 milhões e foi assinado com a
Global Base Development HK Limited, de Hong Kong, e com a 356
Distribuidora, Importadora e Exportadora, empresa brasileira que fez a
representação da Global Base. As máscaras eram de fabricantes da China.
A compra envolveu 200 milhões de unidades de máscaras cirúrgicas e 40
milhões de máscaras KN95. Cada um dos dois lotes custou o mesmo valor,
R$ 345,85 milhões.
Foi por meio deste contrato que o governo Bolsonaro distribuiu máscaras
KN95 impróprias a profissionais de saúde, como a Folha revelou em uma
série de reportagens. O material acabou estocado nos estados e,
posteriormente, foi destinado para o uso comum, fora dos ambientes
hospitalares.
Cada máscara imprópria custou R$ 8,65 aos cofres públicos. No mesmo
momento da pandemia, o Ministério da Saúde pagou R$ 3,59 por máscara do
tipo PFF2, comprada diretamente da fabricante 3M do Brasil.
A PFF2 é considerada um dos melhores modelos para a proteção contra o
coronavírus. A compra da 3M foi omitida em ofícios do Ministério da
Saúde ao MPF (Ministério Público Federal) em Brasília, que investiga
irregularidades nas aquisições de máscaras impróprias.
A pasta não respondeu aos questionamentos da reportagem sobre os
apontamentos da CGU em relação às máscaras. Também não respondeu às
perguntas relacionadas aos respiradores.
Todos esses contratos foram assinados por Roberto Ferreira Dias, que
ocupava o cargo de diretor do Departamento de Logística em Saúde. Ele
foi demitido do ministério após a revelação de suspeitas de cobrança de
propina em um mercado paralelo de vacinas contra a Covid-19.
Em uma auditoria sobre as demonstrações contábeis dos gastos do
Ministério da Saúde em 2020, a CGU constatou 15 lançamentos sem
documentos que confirmam o recebimento das máscaras pela pasta. Isso
impede uma conclusão sobre baixas contábeis no valor de R$ 193,4
milhões.
O relatório não explica se o produto é a KN95 ou a máscara cirúrgica.
Os pagamentos pela importação das máscaras foram adiantados ao
fornecedor, segundo o relatório. Isso ocorreu após o recebimento dos
produtos por empresa transportadora na China, afirmaram os auditores.
O processo analisado "não possui qualquer documentação comprobatória do
recebimento das mercadorias pela unidade, sendo composto apenas das
ordens bancárias ao fornecedor", conforme a auditoria.
A CGU disse que o Ministério da Saúde não apresentou os documentos que
evidenciem a regularidade de adiantamentos feitos ao fornecedor. Não
foram apresentados documentos que comprovem os "efetivos recebimentos
dos insumos pelo ministério".
A 356 Distribuidora, representante da Global Base, afirmou em nota, "com
segurança", que todas as máscaras contratadas foram entregues e que
nenhum pagamento foi feito antes de confirmada a entrega da mercadoria.
"Todos os procedimentos foram realizados de acordo com critérios
definidos pelo próprio Ministério da Saúde. A documentação comprovando a
entrega da mercadoria segundo as exigências do ministério está
devidamente armazenada pela 356 Distribuidora", disse a empresa.
Antes da liberação dos pagamentos, havia a necessidade de apresentação
de quatro documentos à área financeira da pasta, conforme a nota:
comprovante de recebimento da transportadora e logística, comprovante de
recebimento da companhia aérea, invoice (fatura) da Global Base e
relatório de certificação internacional a cargo de empresa suíça.
"Somente após receberem e conferirem esses quatro documentos que o
ministério realizava o pagamento. Nada era pago antes de a companhia
aérea Latam confirmar ao ministério o recebimento da mercadoria em seu
armazém na China, bem como após o recebimento dos demais documentos",
afirmou a 356 Distribuidora.
A Global Base cumpriu o contrato na íntegra, "com os produtos de
qualidade conforme pedidos pelo Ministério da Saúde". "A entrega de 100%
dos materiais ocorreu dentro do prazo acordado, sem receber um centavo
antecipado."
O dono da 356 Distribuidora é Freddy Rabbat, um empresário que atua no
mercado de relógios de luxo suíços. Rabbat assinou o contrato como
representante do fornecedor, e Roberto Dias como representante do
Ministério da Saúde.
Máscaras KN95 distribuídas aos estados continham na embalagem a
inscrição "non-medical". Um parecer da Anvisa (Agência Nacional de
Vigilância Sanitária) foi contrário ao uso dessas máscaras por
profissionais de saúde.
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