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O sonho americano em meio à floresta amazônica

Idealizada pelo empresário Henry Ford, nos anos 1920, a vila de Fordlândia resiste ao tempo. O objetivo, na época, era de abrigar operários de um projeto para produção de borracha, produto que tinha grande demanda internacional Idealizada pelo empresário Henry Ford, nos anos 1920, a vila de Fordlândia resiste ao tempo. O objetivo, na época, era de abrigar operários de um projeto para produção de borracha, produto que tinha grande demanda internacional

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Imagem ilustrativa da notícia O sonho americano em meio à floresta amazônica camera Serraria no ano de 1931 | Foto: Ford Motor Company

Às margens do rio Tapajós, em meio à floresta Amazônica, a antiga caixa d’água que se impõe no cenário é parte da memória que ajuda a contar a história da formação da vila de Fordlândia, instalada no município de Aveiro, oeste do Pará. Distante mais de 300 quilômetros de Santarém, a antiga vila operária formada pelo empresário listado como um dos mais ricos do mundo em meados dos anos 1920, o americano Henry Ford, resiste ao tempo e, ainda hoje, abriga moradores do município que fizeram morada nas antigascasas em estilo americano.

Alojamento dos funcionários em 1932
📷 Alojamento dos funcionários em 1932 |Foto: Ford Motor Company

Mesmo tendo passado várias décadas desde que os americanos abandonaram o projeto, deixando tudo para trás, muitos dos elementos que compunham a rotina dos operários em Fordlândia no passado ainda podem ser vistos. Além da caixa d’água que se mantém em funcionamento, o galpão formado por uma estrutura de ferro e janelas de vidro permanece de pé, ainda que sentindo os efeitos do tempo. Em seu interior, maquinários antigos, ferramentas, veículos e até mesmo mobiliários do antigo hospital repousam, amontoados.

Fordlândia atualmente
📷 Fordlândia atualmente |Foto: Wagner Almeida

Apesar de hoje já não se encontrar seringueiras no local, o professor e morador do distrito de Fordlândia, Luiz Magno Ribeiro, 48 anos, lembra que o projeto instalado pelo americano Henry Ford tinha como um dos objetivos implantar uma plantação inédita de seringal que pudesse atender à demanda de borracha não apenas de sua indústria, mas do mercado internacional. Instalado em 1928, o projeto sobreviveu até 1945, quando uma série de acontecimentos fez com que os planos de extração da borracha no local não se sustentassem. Apesar disso, o professor Luiz Magno Ribeiro aponta que a história de Fordlândia vai além da memória de um projeto que não deu certo.

“Podemos dizer que o projeto do Ford foi um fracasso em relação à ambição de criar um plantio de extração de látex para exportação para os EUA e para manter a sua indústria, mas se você for olhar a riqueza extrativista que ele pode explorar daqui ela dá de cobrir o investimento”, acredita. “Não podemos dizer apenas que não deu certo. Deu, Fordlândia existe até hoje, com pessoas que falam com muito amor desse momento do Ford. Infelizmente, nós não temos condições de manter uma estrutura que foi inédita para a Amazônia no final da década de 20 até o início da década de 40. Isso,para nós, fica inviável”.

Luiz Magno Riberio
📷 Luiz Magno Riberio |Foto: Wagner Almeida

Luiz explica que todo o patrimônio existente em Fordlândia pertence ao Governo Federal e que nenhuma edificação ou casa chegou a ser doada para nenhum morador da vila. Hoje, a população que vive na área utiliza e ajuda, dentro de suas possibilidades, a manter as estruturas, sobretudo das antigas casas da vila operária. “Nós passamos aproximadamente 90 anos achando que alguém deveria cuidar da gente. Foi implantado na mente das pessoas que você não poderia reformar sua casa porque você não era dono, que tudo isso pertencia ao Governo Federal. Mas, se você não reformar o local onde você mora, você não vai perder apenas a sua casa, mas também a história desse lugar”, considera o professor. “Então, a gente fica feliz quando temos ações, repórteres, pesquisadores que vêm buscar entender esses três momentos que vivemos: o momento da campanha Ford, que os remanescentes dessa companhia falam com muito amor desse momento; temos que entender também o momento em que o Ministério da Agricultura assume isso aqui e também cuida com muito amor, e aquele momento que ficou intervalar, que muitos publicam como fantasma”.

A relação da situação de desuso do patrimônio remanescente do antigo projeto de Ford com a ideia de uma ‘cidade fantasma’ não agrada a Luiz Magno Ribeiro. Ele lembra que, para além do antigo projeto de Ford, o distrito também é constituído pelas pessoas e suas relações com o local. “Essa publicação como fantasma se relaciona apenas aos projetos, esquece que existiam pessoas, existiam sonhos e esses sonhos começam nas escolas. Como você afasta um fantasma e a história de um fracasso? Educando bem uma criança. Fazendo com que ela aprenda com os erros e não só com os acertos”, reflete. “Se a gente educar uma criança voltada à historicidade do lugar que ela vive, é certeza que você terá a continuidade de alguém que irá lutar pelo lugar onde mora”. Parte dos investimentos da companhia na região, Luiz Magno lembra que a antiga escola fundada no dia 13 de maio de 1931, nomeada como Grupo Henry Ford, se mantém em funcionamento até hoje, já com o nome de Escola Municipal de Ensino Fundamental Princesa Izabel.

“Ela (a escola) educava, no antigo modelo de ensino, da primeira série até a quinta série do ensino fundamental. Eles não impunham a língua inglesa como obrigatória no ensino. A educação era nos moldes da grade curricular vigente pela LDB (Lei de Diretrizes e Bases) no Brasil”, explica. “A escola está em funcionamento em situações precárias. O prédio principal não funciona mais com os alunos, apenas os anexos dela que funcionam”.

Domingos da Silva
📷 Domingos da Silva |Foto: Wagner Almeida

"Podemos dizer que o projeto do Ford foi um fracasso em relação à ambição de criar um plantio de extração de látex para exportação para os EUA e para manter a sua indústria, mas se você for olhar a riqueza extrativista que ele pode explorar daqui ela dá de cobrir o investimento”, Luiz Magno Ribeiro

No “tempo do Ford” havia “muita fartura”

Além da escola, algumas das casas construídas ainda na época do projeto também continuam em uso, como é o caso da residência onde mora Elizeu Couto Nogueira, 77 anos. Nascido no município vizinho de Belterra, ele conta que se mudou definitivamente para Fordlândia há 21 anos, fixando residência na casa em que, na época de Ford, funcionou a Casa Clube da Vila Americana. “Naquele tempoera vila, agora é cidade”.

Edificações permanecem de pé
📷 Edificações permanecem de pé |Foto: Wagner Almeida

Elizeu conta que apesar de ter nascido em Belterra, foi criado durante toda a infância em Fordlândia, na época em que os americanos já haviam deixado o local e a área era utilizada como sede das instalações do Ministério da Agricultura, além de abrigar algumas fazendas. Já adulto, mudou-se para a capital amazonense, Manaus, e lá constituiu família. Depois de um período, porém, sentiu vontade de retornar à Fordlândia. “Eu convidei a mulher para vir para cá, mas ela não quis porque a família dela estava lá em Manaus, então eu vim sozinho. Moro há 21 anos no Zebu Hotel”, recorda, ao contar como acabou morando na residência da época da antiga vila operária. “Eu vim para cá e tinha essas casas desocupadas, então, e fui no escritório. Disse que estava precisando de uma casa, com especialidade o Zebu Hotel, aqui era um mato doido e agora se vê limpeza. Esse nome é porque tinha muito gado zebu aqui nessa região. Antes era a Casa Clube, no tempo do Ford”.

Casa típica americana que resistiu ao tempo
📷 Casa típica americana que resistiu ao tempo |Foto: Wagner Almeida

Sobre o ‘tempo do Ford’, como ele gosta de se referir, o paraense fala com muito carinho. “Era coisa muito boa, pagavam corretamente, era muita fartura, não tinha fome. Tinha moral, higiene e educação, tudo tinha em Fordlândia”, enumera. “Agora, eles vieram aqui para ver o negócio da seringa, mas também tiraram muito minério, foi tempo de Getúlio Vargas. Até hoje ainda tem bastante minério. Tem duas firmas aqui, uma do Paraná e outrado Maranhão, extraindo”.

Enfermaria do hospital em 1931
📷 Enfermaria do hospital em 1931 |Foto: Ford Motor Company

MINERAÇÃO

A atividade de mineração desenvolvida, hoje, na região também é lembrada por Guilherme Lisboa, 72 anos. Nascido em Óbidos, ele foi criado e viveu a maior parte da vida em Santarém. Depois de aposentado da antiga função de despachante aduaneiro, decidiu mudar-se para Fordlândia, onde administra uma hospedaria, a Pousada Americana. “Estou há 13 anos aqui. Eu vim para cá para caçar, pescar. Aí, montei esse negócio, uma pousada”, conta. “Eu já me considero um cidadão fordlandense e o futuro disso aqui é muito promissor”.

Guilherme Lisboa
📷 Guilherme Lisboa |Foto: Wagner Almeida

Guilherme conta que há uma sinalização de que a estrada que dá acesso ao distrito de Fordlândia seja asfaltada, o que, para ele, pode impactar positivamente na economia local. “Nós temos a promessa do nosso atual Governo que vai asfaltar essa estrada aqui até a Transamazônica, são 48 km. Se ele fizer isso, vai bombar até porque aqui é uma região rica em minério, uma das maiores jazidas de gesso do país se encontra aqui”, conta. “Temos três mineradoras, duas já atuando e outra em pesquisa ainda para extrair o gesso, o calcário, o caulim. Com a estrada asfaltada o acesso fica mais fácil. No momento, o escoamento desse minério é pelo rio. Tem certas dificuldades que o pessoal enfrenta por causada estrada que não tem”.

O que diz o Iphan

O órgão enviou a seguinte nota: “O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), dentro da missão de proteger e promover os bens culturais do país, após receber pedido da sociedade para que o local seja protegido, tem realizado estudos para instruir o processo para eventual tombamento federal dos conjuntos de Belterra e Fordlândia no Pará. Os estudos já estão em fase de conclusão, com a consolidação do mapa das áreas de proteção que inclui exemplares residenciais das vilas, setores industriais, caixas d’água, pavilhões, alojamentos e galpões. Na elaboração do processo de tombamento, constam dossiês, mapas e inventários, fotografias e pareceres técnicos, que caracterizam e identificam os valores culturais associados ao bem. Essas informações podem ser conferidas no processo público e disponível no SEI para consulta: 01458.002985/2010-82. Na sequência, conforme o ordenamento legal do campo do Patrimônio Cultural, caso haja indicação técnica para análise do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural é preciso dar publicidade a intenção de tombamento. É importante lembrar que a decisão final sobre o tombamento ou não de um bem é tomada pelos membros do conselho, sendo a última etapa do processo”.

TOMBAMENTO

l O patrimônio que integra o distrito de Fordlândia enfrenta um longo processo de tombamento que já dura mais de 30 anos. Em dezembro de 2021 chegou a ser realizada uma audiência pública no local para ouvir os segmentos sociais e as autoridades envolvidas na preservação do patrimônio. Ainda em 2015, Ministério Público Federal (MPF) ingressou com ação civil pública pedindo ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) o tombamento do patrimônio histórico, artístico e arquitetônico de Fordlândia.

Fonte: Justiça Federal.

Parte do maquinário ainda funciona

Administrador do antigo galpão que ainda resiste na vila, Domingos da Silva, 53 anos, aponta que alguns dos maquinários antigos ainda são utilizados por quem mora no distrito. “Aqui é o antigo galpão que era a oficina no tempo do Ministério e a gente vê que ainda tem as máquinas, muitas ainda estão funcionando, a exemplo desse torno mecânico que tem um senhor que é um dos funcionários do Ministério e que continua trabalhando aqui nesse torno”, conta. “Ele está em perfeito estado, bem conservado. Tem cortadeira, furadeira. Muitos equipamentos ainda estão em uso”.

Além dos depósitos de ferramentas e da carcaça de um caminhão F11.000, outros elementos do passado permanecem abrigados no galpão. Para que tudo seja preservado, Domingos conta que é feito o controle de quem tem acesso ao local. “Tudo é mantido por aquela questão de preservação da história. Colocamos uma vigilância para preservar esse patrimônio que ficou aqui para a gente e que compõe uma história”.

Uma série de fatores contribuiu para o projeto fracassar

A doação de um milhão de hectares de terra em plena floresta amazônica, feita pelo Governo do Brasil para o americano Henry Ford, deu início à história do que, hoje, é o distrito de Fordlândia, pertencente ao município de Aveiro. Em 1928, o dono da Ford Motor Company, então líder da indústria automobilística dos Estados Unidos, fundou o projeto de produção de látex, às margens do Rio Tapajós, para dominar a produção da borracha mundial e não mais depender do cultivo europeu que ocorria nas colônias mantidas no Sudeste da Ásia. Até então, a borracha extraída na Amazônia era proveniente das árvores nativas, que haviam nascido naturalmente na floresta, portanto,afastadas umas das outras.

Para dar segmento ao seu projeto, Henry Ford transferiu para o Estado do Pará elementos que possibilitaram a formação de uma típica cidade norte-americana. Chamada inicialmente de Vila Americana, a cidade contava com energia elétrica, água corrente, piscina comunitária, hospitais, escolas e até mesmo um salão de festas. Para dar subsídio ao trabalho, havia ainda uma serraria, geradores, uma torre com uma caixa d’água e a fábrica de borracha. Apesar da ida de administradores americanos para o local, a mão de obra que atuava na extração e beneficiamentodo látex era brasileira.

Apesar de audacioso, uma sequência de problemas fez com que o projeto não desse certo, incluindo o próprio surgimento da borracha sintética e a ocorrência de pragas que teriam atingido a plantação. Como resultado, 18 anos após a implantação do projeto, em 1945, os americanos acabaram abandonando o local, sem levar nada. Já a partir de 1950, a área abrigou as instalações do Ministério da Agricultura.

Prédio da escola em 1933
📷 Prédio da escola em 1933 |Foto: Ford Motor Company
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