Emprestado por Portugal para as celebrações dos 200 anos da independência do Brasil, o coração de D. Pedro I chega à Brasília nesta segunda (22) sob críticas de intelectuais de ambos os países. Apesar da polêmica - ou devido a ela -, uma inédita exibição pública do órgão arrastou milhares de curiosos à igreja da Lapa, no Porto, neste fim de semana.
Segundo a prefeitura da cidade, 3.000 pessoas passaram pelo local nas primeiras oito horas de exposição. Quando o coração voltar da temporada de 20 dias no Brasil, haverá uma nova oportunidade de visitação no mesmo espaço, em 10 e 11 de setembro.
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Primeira cientista a conduzir uma análise detalhada dos restos mortais de Pedro 1º, a arqueóloga forense Valdirene Ambiel, pesquisadora da USP, é uma das principais vozes contrárias à viagem do coração.
"Vejo um contexto político, porque não há contexto histórico ou propósito educacional para trazer esse coração por pouquíssimo tempo", afirma. "A partir do momento em que há o uso de órgãos humanos para uma simples exposição, sem o contexto de ensino, a exibição se torna algo simplesmente bizarro."
Em artigo publicado no jornal luso Público, o sociólogo português João Teixeira Lopes não poupou críticas ao evento. "Um coração em formol será transportado para gáudio imenso do governo Bolsonaro, que aqui encontra a ocasião de um festim necrófago galvanizador da sua base de apoio, fazendo, em plena campanha eleitoral, como os ditadores romanos, a política de panem et circenses [pão e circo]", afirmou.
Ambiel, que também é historiadora e antropóloga, considera que há paralelos com a instrumentalização, por parte da ditadura militar, do transporte do corpo do imperador ao Brasil em 1972. Apresentado como fundador da nacionalidade brasileira, d. Pedro 1º teve a imagem largamente explorada pelos militares.
Também sob regime ditatorial à época, Portugal enviou ao Brasil os restos mortais do imperador devido aos festejos dos 150 anos da independência. Durante cinco meses, a ossada passou por uma espécie de turnê em várias cidades brasileiras, com direito a cerimônias religiosas e desfiles pelas ruas.
Autor de vários livros sobre a história do Brasil, o escritor Laurentino Gomes também vê semelhanças entre o empréstimo do coração e a espetacularização dos restos mortais promovida pela ditadura.
"Bolsonaro, que cultiva a ditadura brasileira, é um adepto da ditadura, é um homem autoritário, um misógino, preconceituoso, racista, tentou mimetizar os generais [da ditadura militar]. Eles trouxeram o corpo, então, num gesto simbólico, vamos trazer o coração", afirmou ele em entrevista à agência Lusa.
Apesar de toda a propaganda oficial, a pesquisadora da USP destaca que os restos mortais de d. Pedro foram tratados com negligência, da forma com que foram depositados às condições em que ficaram no mausoléu em São Paulo, onde havia excesso de umidade. "Houve uma festa linda, mas contrastou muito com o que me deparei quando houve a abertura da urna funerária dele em 2012", afirma ela.
"Fiquei chocada, era como se todo o conteúdo da urna funerária original tivesse sido vertido para a que o trouxe ao Brasil. A face estava quase virada para o fundo da urna. O corpo estava completamente desarticulado. Para mim, até mesmo como ser humano, isso é uma falta de respeito.
"Não por acaso, a preocupação com a conservação do coração –preservado desde a morte de d. Pedro 1º, em 1834– tem sido crucial para as autoridades portuguesas. Antes de aprovar o empréstimo, a Câmara Municipal do Porto encomendou uma perícia técnica. Depois, montou um esquema de segurança.
O órgão será transportado em um avião da Força Aérea Brasileira, num dispositivo pressurizado. Além do prefeito do Porto, Rui Moreira, também viajará o comandante da polícia municipal, António Leitão da Silva.
Em Brasília, o coração deve ficar em visitação restrita no mesmo expositor especial utilizado agora no Porto. A vitrine foi projetada pelo arquiteto Luís Tavares Pereira para posicionar o coração na altura do órgão no corpo humano, tendo como referência a altura média das pessoas em Portugal e no Brasil.
Os portugueses também enviarão para o Brasil um kit especial com formol e outros utensílios a serem usados em caso de emergência, como a quebra da urna de vidro em que o órgão está depositado.
Conhecido em Portugal como d. Pedro 4º -devido ao breve período em que foi rei do país ibérico-, o monarca determinou que seu coração ficasse no Porto como forma de reconhecimento à importância da cidade na luta em que travou pelo trono contra as tropas absolutistas de seu irmão mais novo, d. Miguel.
Mesmo sob um cerco intenso por mais de um ano, a cidade resistiu e foi crucial para a vitória de Pedro 1º, que morreria de tuberculose meses após o fim do conflito, em setembro de 1834, aos 35 anos.
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