Então recém-formado no ensino médio em uma escola pública de Belo Horizonte, Pedro Luís Santos ouviu no fim de 2012 de um professor do cursinho popular que frequentava que deveria tentar uma vaga nas universidades federais do país por meio das cotas raciais.
"Na hora, eu respondi que não, disse que queria entrar por meu próprio mérito. Eu só ouvia comentários negativos sobre as cotas, diziam que os cotistas iriam entrar sem preparo e diminuir a qualidade da universidade", conta Santos, que na época tinha 18 anos.
Depois de alguns dias de conversa com o professor, o jovem –que se classifica como preto– mudou de ideia. "Ele me fez ver que não era nenhum demérito. As cotas eram, na verdade, uma compensação pelas dificuldades que tinha enfrentado para estudar", conta Santos, que se formou em história na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e hoje dá aula em uma escola da capital mineira.
Naquele mesmo ano, as cotas raciais foram sancionadas pela então presidente Dilma Rousseff (PT) para todas as universidades federais. Na época, a política foi questionada sob o argumento de que feria a igualdade de acesso à educação e poderia aumentar a tensão racial no país.
Também havia os que defendiam que as cotas colocariam na universidade estudantes sem o preparo necessário, que acabariam desistindo dos cursos.
Santos conta que alguns colegas evitavam falar que eram cotistas por receio de serem vistos como menos merecedores de estarem na universidade.
"Nos primeiros meses, eu tinha medo que me perguntassem se eu tinha entrado pelas cotas, como se isso tirasse meu mérito. Mas depois eu entendi que deveria ser motivo de orgulho. Hoje, vejo que meus alunos concorrem às vagas pelas cotas sem medo de discriminação, entendem que é um direito e não uma vantagem."
Dez anos depois da sanção presidencial, diversas evidências científicas mostram que alunos cotistas têm desempenho similar aos não cotistas e abandonam menos os cursos.
Atualmente as cotas raciais são apoiadas por metade da população, segundo pesquisa Datafolha de junho –34% são contra. A prática foi ampliada e hoje está presente não só nas universidades federais, mas também em dezenas de instituições de ensino estaduais e particulares.
"Havia uma espécie de negacionismo sobre a desigualdade racial do país, de quem defendia a igualdade de acesso diante de condições tão díspares. Quanto mais pessoas foram beneficiadas por essa política, mais difícil foi negar as evidências do resultado positivo dessa ação para a sociedade", avalia Flavio Carvalhaes, professor de sociologia da UFRJ.
Loise Lorena, 27, entrou em psicologia na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) em 2014. A instituição foi a primeira do país a adotar cotas raciais, ainda em 2003. Ela conta que, apesar de a política já ter sido adotada há mais tempo, os alunos negros ainda eram minoria no curso.
Apesar de afirmar não ter sido discriminada dentro da universidade, Loise lembra de uma professora que em sala de aula perguntou quem era cotista. "Ela não explicou o motivo da pergunta e ninguém teve coragem de questioná-la."
Para Loise, a ausência de negros não se restringe apenas aos estudantes, mas também ao corpo docente, autores e referências dos currículos dos cursos. Ela avalia que lentamente essa realidade começa a se transformar como consequência das cotas.
"Conforme os anos foram passando, nossa presença foi crescendo. Foi só quando cheguei ao estágio em psicologia social que percebi estar em um grupo formado por uma maioria negra. Hoje temos um trabalho para a saúde mental da população negra, que só foi possível por estarmos lá", conta Loise, que faz doutorado na área.
A advogada Roberta Machado, 25, também avalia que a maior pluralidade começa a permitir que a universidade seja mais acessível e receptiva a estudantes que enfrentam dificuldade para estudar. Ela se mudou de São Paulo para o Rio em 2016 para cursar direito na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
"Fui a primeira da minha família a entrar em uma universidade pública, a mudar de cidade para estudar. Minha mãe me deixou no Rio com uma cartela de ovos, um pacote de pão e um de arroz, foi o que conseguiu me dar", conta.
Ela teve que trabalhar durante toda a faculdade para se manter no curso e, por isso, não conseguia participar de atividades de pesquisa ou extensão. "Só consegui participar de um grupo de pesquisa no último ano, que era coordenado por um professor negro. Ele foi o único a entender a dificuldade de tempo que eu tinha e foi flexível com os horários."
De uma turma de 70 alunos, Roberta era uma dos 5 estudantes negros do curso. Ela diz que os cinco anos de graduação foram solitários pela dificuldade de se relacionar com os demais colegas.
"Eles falavam sobre as várias viagens que tinham feito nas férias e eu nunca tinha nem viajado. Eu não sabia como era a roupa adequada para ir à faculdade, porque não conhecia ninguém que tinha feito direito ou que era advogado. Mas, ao longo dos anos, esse ambiente foi mudando, com a entrada de mais pessoas que tinham a mesma vivência que eu."
Alejandro Guerrero, 22, entrou em letras na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) em julho deste ano por cotas raciais e conta nunca ter ouvido algum colega ou professor questionar a política.
"Sei que antigamente havia quem dissesse que as cotas eram um problema, mas hoje parece ser diferente. Mesmo quem não é cotista defende as cotas e questiona quando entra em uma sala de aulas e não há negros", diz.
Para Guerrero, assim como para pesquisadores da área, o fortalecimento da política de cotas depende do fortalecimento de ações para a permanência estudantil.
"A grande dificuldade para mim hoje é continuar na universidade, porque os auxílios não são o suficiente. Meu sonho era entrar aqui, ter que abandonar o curso por falta de dinheiro seria meu pior pesadelo."
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