Imagine levantar de manhã com a parceira toda machucada após ser atacada sexualmente durante o sono e não ter a menor ideia de como aquilo aconteceu? Ou, então, estar no serviço militar, masturbar-se à noite pela base e depois acordar achando que os colegas estão fazendo uma brincadeira de mau gosto?
Os dois casos são reais e foram relatados por pacientes que receberam o diagnóstico de sexônia ou sexonambulismo, uma disfunção rara do sono que leva a um comportamento sexual involuntário e impróprio, muitas vezes violento.
O distúrbio é medicamente conhecido como uma parassonia, que é reconhecida pela CID (Classificação Internacional de Doenças) como movimentos anormais ou eventos psicológicos que ocorrem durante o sono.
Especialistas ponderam, porém, que a disfunção precisa ser melhor conhecida e estudada, principalmente quando envolve agressão. Nestes casos, dizem, o judiciário deve diferenciar o paciente com a parossonia do estuprador sem a patologia buscando a inocência.
O primeiro é comum a três homens diferentes que tiveram o distúrbio confirmado no Brasil pela médica Luciana de Oliveira Palombini, especialista em medicina do sono. O segundo caso é de um soldado norte-americano, citado no artigo "Sexônia: que sexo é esse?", publicado pela Revista Brasileira De Sexualidade Humana, em 2019, por Palombini e pela psicoterapeuta e sexóloga Glaury Coelho.
Palombini, que é médica do Instituto do Sono de São Paulo, conta que se trata de um diagnóstico bastante difícil, mas real e capaz de gerar danos emocionais ao paciente e riscos para quem dorme ao lado dele.
"As parassonias são comportamentos inadequados durante o sono, dos quais a pessoa realmente não tem controle", afirma a especialista.
A sexônia, assim como outros transtornos do sono, acontece porque existem uma dissociação inadequada dos diferentes elementos do sono. "No momento em que normalmente não há atividade muscular para realizar esses comportamentos, a pessoa não possui essa inibição", resume a médica.
As causas da disfunção vão desde fatores genéticos e físicos, como apnéia do sono e problemas respiratórios ou até psicossociais, como uso de drogas ou presença de transtornos mentais como borderline.
O tratamento inclui mudanças de hábitos com objetivo de reduzir o estresse, evitar a privação de sono e eliminar a rotina sedentária. A terapia e o uso de aparelhos noturnos para correção da respiração podem ser associados.
"Quando a gente aborda todos esses aspectos da parassonia, esses comportamentos anormais cessam sim, mas se existe tendência, tem que haver sempre acompanhamento e manutenção da boa higiene do sono", reforça Palombini. A investigação de sexônia inclui exame de polissonografia com um especialista e avaliação psicoterápica.
Psicóloga do sono pela SBP (Sociedade Brasileira de Psicologia) e ABS (Associação Brasileira do Sono), Coelho diz que este transtorno ainda é pouco conhecido e demanda mais estudos para melhor prevenção. Apesar de raro, esse "sonambulismo sexual" é polêmico, pois envolve desde transtornos conjugais até situações criminais.
"O sistema judicial tem que comprovar se é uma parassonia ou um estuprador tentando se safar do dolo. É fundamental fazer a distinção. Há poucos especialistas ainda, mas informação clara e referendada já contribui como prevenção", afirma a psicóloga.
Prevalente em homens, essa percepção distorcida da consciência sexual pode também acontecer em mulheres e o foco é sempre a região genital. Excitação e orgasmos durante o sono não são considerados sexônia.
O transtorno pode se manifestar nos dois gêneros como masturbação violenta do outro (estupro) e de si, e por meio de falas com conteúdo sexual durante o sono. Em sua fase mais agressiva em homens, leva a tentativa e consumação do ato por meio do sexo oral, penetração vaginal ou anal até alcançar o orgasmo.
O artigo de Palombini e Coelho aponta que na prática clínica "as investidas sexuais durante o sono são subnotificadas e, portanto, subdiagnosticadas", uma vez que acontecem episódios em que os parceiros não rejeitam o contato físico ou denunciam. Na literatura científica internacional, há menos de 100 casos relatados, a maior parte originada em clínicas de sono e no próprio sistema Judiciário.
"Por acontecer entre casais que dormem na mesma cama, é possível que não haja uma queixa que leve a parceria a comentar com o médico, ou fazer uma denúncia policial", diz Coelho.
A principal característica da sexônia é que a pessoa age sexualmente como se estivesse acordada, com lubrificação, ereção, orgasmo e ejaculação.
"A reação fisiológica se apresenta associada ao comportamento sexual não consciente e, muito importante: a pessoa apresenta despertar confusional e amnésia", descreve a sexóloga.
O dano maior, segundo Coelho, é sempre para quem foi vítima de abuso ou estupro, pois a pessoa dormindo está indefesa, mas o paciente também sofre com consequências. "E vem a culpa e a vergonha que pode levar a uma violência contra si mesmo", aponta a psicoterapeuta.
A sexóloga lembra que algumas parassonias como sonambulismo, sonilóquio e terror noturno são comuns na infância e servem de alerta caso reapareçam a partir da adolescência, uma vez que outros distúrbios do sono podem estar associados com a sexônia.
"Na infância é necessário investigar se não houve comprometimentos neurológicos, quais fatores estressantes estão associados às crises e propor uma intervenção psicoeducativa no ambiente familiar", afirma Coelho.
As duas profissionais alertam que episódios sexuais seguidos de amnésia do parceiro são indicativos para buscar ajuda especializada em problemas do sono, pois além de potencial violência, criam um grande estresse do casal, o que atrapalha a capacidade de descanso e a confiança no outro.
"A gente precisa fazer uma boa avaliação do equilíbrio emocional e de tudo que tem de ser controlado e manejado para cessar o problema", conclui Palombini.
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