
O crime organizado costuma falar em códigos e siglas, mas nem sempre consegue manter suas ordens longe das mãos da polícia. Quando isso acontece, revelam-se decisões e sentenças que até então circulavam apenas nos corredores do cárcere e nas ruas. Foi uma dessas brechas que, em 2019, trouxe à luz um plano da cúpula do Primeiro Comando da Capital (PCC) com alvos, nomes e funções bem definidos.
O delegado Ruy Ferraz Fontes, que ocupou o posto de delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo entre 2019 e 2022, foi assassinado a tiros na noite da última segunda-feira (15) em Praia Grande, após uma perseguição que se estendeu por cerca de 2,5 km e terminou com o carro da vítima batendo contra ônibus e capotando. Ao menos quatro criminosos participaram diretamente do ataque, segundo a apuração policial.
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CARTA DE 2019 REVELA CADEIA DE COMANDO
Investigações do Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) passaram a olhar com atenção para uma carta apreendida em 2019. O documento que, segundo promotores e delegados, trazia ordens da chamada "Sintonia Geral" do PCC para atacar autoridades da Polícia Civil, entre elas o então delegado-geral. A peça escrita à mão foi encontrada pelos policiais na prisão em flagrante de Sandro de Cássio, o Gardenal, em 12 de junho de 2019, quando, além da carta, foram apreendidos entorpecentes e uma arma.
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A origem das ordens, conforme apontam as apurações jornalísticas e trechos da denúncia do Ministério Público de São Paulo (MPSP), remete ao alto comando: Marco Herbas Willian Camacho, o Marcola, cujo processo e transferências para presídios federais tiveram participação de Ruy Ferraz, teria delegado a comunicação de missões a Décio Gouveia Luiz, o Decinho. Decinho, por sua vez, repassou instruções a Nailton Vasconcelos Martins, o Irmão Molejo, que convocou reunião em 10 de março de 2019, em cidade Tiradentes, para distribuir tarefas e recrutar executores. A defesa de Marcola nega envolvimento.
KORINGA, BARATA, TERERÊ, CORINTIANO E MIMO
De acordo com a denúncia e com o documento apreendido, a "missão" contra Ruy Ferraz foi atribuída a um núcleo disciplinar da facção - frequentemente descrito nas investigações como o grupo encarregado de impor obediência e aplicar punições internas. Os nomes apontados pela Promotoria como escalados para a execução eram: Fernando Henrique dos Santos, o Koringa; Jhonatan Alexandre Rodrigues, o Barata; Alan Donizeti dos Santos, o Tererê; Marcos Ferreira de Souza, o Corintiano; e Cleberson Paulo dos Santos, o Mimo. Cada um, no relato das peças processuais, tinha função definida: do 'núcleo disciplinar' à liderança de operações na rua.
Segundo a investigação, Koringa integrava o que a acusação chama de "núcleo disciplinar", responsável por açoitar e punir integrantes que descumprissem ordens. Atividades que teriam envolvido tortura, lesões e violência sistemática. Barata foi descrito como um "matador" dentro do chamado Bonde dos 14, um conselho formado por 14 lideranças da zona leste que deliberava penas e punições. Tererê acumulava função dupla: fiscalização de pontos de venda de drogas e execução de sanções; Corintiano (ou Ká) era apontado como executor após decisões do “tribunal do crime”; e Mimo exercia papel de disciplina e liderança entre os membros soltos, organizando reuniões e cobrando providências.
TAREFAS E COBRANÇAS
A própria carta apreendida descreve, em linguagem interna da facção, a distribuição de responsabilidades e a rigidez das cobranças. No trecho transcrito pela Promotoria e por veículos que tiveram acesso ao documento, a cúpula deixa clara a gravidade das sanções em caso de fracasso: "se não for concluída cada missão, a cobrança com nossos irmãos será a altura pagando com a própria vida." Abaixo, o trecho integral transcrito na investigação:
- "Viemos através desse SALVE passar direção referente os trampos que foram passados a nossos irmãos do quadro disciplinar e ainda não foram concluídos.
- Em primeiro lugar deixar claro que toda as missões que foram passadas para nossos irmãos são de interesse da família e não de interesse individual.
- A sintonia geral vem cobrando o resultado dos trampos passados para nossos irmãos da zona leste e ABC (Santo André, São Bernardo e São Caetano do Sul) contra os vermes que vem prejudicando o andamento dos trabalhos da família FM ABCD (Santo André, São Bernardo, São Caetano do Sul e Diadema).
- Irmãos responsáveis: Lixo, Morto, Pita e Tito. Missão: Wagnão da DISE (Delegacia de Investigações Sobre Entorpecentes) de São Bernardo do Campo.
- Disciplina Cidade Tiradentes Irmãos responsáveis: Koringa, Mimo, Barata, Terere, Corintiano. Missão: delegado Ruy Ferraz Fontes.
- Apoio dos 14 Irmão responsáveis: Oreia de Guaianazes, Jagunço Savoy, Irmão R, Casinha do Bonifácio. Missão: investigador Saulo do prédio.
- Em cima dessa caminhada a sintonia deixa ciente que se não for concluída cada missão, a cobrança com nossos irmãos será a altura pagando com a própria vida.
- Deixando claro que os interesses do comando estão à frente de qualquer outro.
- Está determinado que seja feito de bate pronto esses trampos.
- Um forte abraço a todos.
- Seguiremos incansavelmente.
- Sintonia Geral.”
EXECUÇÃO EM VIA PÚBLICA
No dia do atentado que vitimou Fontes, imagens de circuito interno obtidas pela polícia mostram a tática dos autores: uma Hilux SW4 preta aguardou com os faróis apagados até a passagem do veículo do ex-delegado na Rua Arnaldo Vitulli; ao ser ultrapassado, o utilitário acendeu os faróis e começou a disparar, segundo as gravações. Outra câmera registrou o vidro do lado do motorista sendo estilhaçado por uma saraivada de tiros. A perseguição que se seguiu terminou na Avenida Doutor Roberto de Almeida Vinhas, onde o carro do delegado colidiu com dois ônibus e capotou; além do alvo, civis foram atingidos de forma incidental e duas pessoas foram encaminhadas com ferimentos leves a um hospital local.
JURADO DE MORTE POR MARCOLA

Fontes, que tinha histórico de ações que atingiram diretamente líderes do PCC, incluindo participação em transferência de chefes para unidades federais de segurança máxima, era figura conhecida pela atuação firme contra a facção, circunstância que, na avaliação de promotores e delegados, pode ter motivado a sentença da "Sintonia dos 14". A apuração agora busca ligar de forma direta a cadeia de comando indicada na carta à execução praticada em Praia Grande.
Autoridades vêm atuando em dois eixos: identificar e prender os executores que deram sequência à emboscada e buscar provas documentais e periciais que vinculem o atentado às ordens formalizadas em 2019. Investigadores já apontaram o uso de ao menos três veículos no ataque e seguem a coleta de vestígios balísticos, imagens e depoimentos que ajudem a reconstruir a logística do crime. Ao mesmo tempo, o MPSP e delegados envolvidos monitoram redes de comunicação da facção e tentativas de retaliação.
AUTORIDADES EM PERIGO
A discussão pública sobre proteção a agentes que enfrentam quadrilhas e sobre a estrutura de resposta do Estado ganhou novo impulso com a execução. Especialistas consultados por veículos de imprensa alertam para o risco de reações em cadeia e para a necessidade de medidas integradas entre polícia, Ministério Público e forças de segurança para desarticular tanto as ordens vindas do cárcere quanto a execução na rua. Operações recentes do MP-SP já miraram lideranças do PCC e investigaram financiamento, aquisição de armas e logística usada pela facção.
A defesa de Marcola, segundo nota enviada a veículos que cobriram o caso, nega qualquer participação do seu cliente nos fatos apontados. As investigações, contudo, seguem em curso e prometem esclarecer se a hierarquia traçada nas anotações de 2019 convergiu para a execução registrada em 15 de setembro de 2025. Enquanto isso, familiares, colegas e autoridades esperam que a apuração entregue respostas e que os responsáveis sejam levados à Justiça.
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