
O que era para ser uma nova chance de vida se tornou um pesadelo para o paulista Geraldo Vaz Junior, de 58 anos de idade. Em julho de 2023, ele recebeu pelo Sistema Único de Saúde (SUS) um fígado transplantado no Hospital Israelita Albert Einstein, por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS (Proadi-SUS). Meses depois, ele foi diagnosticado com adenocarcinoma, um tipo de câncer maligno, originado no órgão doado. Em agosto de 2024, a doença evoluiu para metástase pulmonar.
Segundo exames genéticos realizados em março deste ano (2025), as células tumorais presentes no fígado não tinham o mesmo DNA do receptor. O resultado confirmou que o câncer era pré-existente no órgão transplantado, vindo da doadora, uma mulher que morreu vítima de um Acidente Vascular Cerebral (AVC).
A situação foi confirmada por um exame que comparou o material genético das células cancerígenas com o DNA de Geraldo. O laudo apontou que as células da neoplasia não correspondiam ao genótipo do sangue periférico do paciente. A análise mostrou ainda que o tumor continha cromossomos femininos (XX), enquanto o paciente possui cromossomos masculinos (XY).
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“Cada pessoa tem uma ‘impressão digital genética’ única. Esse exame comparou o DNA das células do câncer com o DNA do Geraldo e com o DNA da pessoa doadora do fígado. O resultado foi conclusivo: as células do tumor têm o DNA do doador, não do paciente”, afirmou a médica legista e perita Caroline Daitx, que analisou os exames.
Com o diagnóstico confirmado, Geraldo foi submetido a um retransplante em maio de 2024. A justificativa médica foi de “adenocarcinoma advindo do doador”. No entanto, três meses depois, uma nova ressonância apontou que o câncer havia se espalhado para o pulmão. A nova avaliação identificou metástase com as mesmas características das células encontradas no fígado transplantado.
“Isso sugere que a doadora já tinha um câncer que não foi detectado antes da doação, e pequenas células desse tumor estavam presentes no fígado transplantado”, explicou Daitx.
Triagem e risco raro
Apesar do caso causar espanto, especialistas afirmam que a transmissão de câncer via transplante de órgãos é extremamente rara, com incidência inferior a 0,03% dos procedimentos realizados. O oncologista Paulo Hoff, professor da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), destaca que, mesmo com a triagem rigorosa feita antes dos transplantes, incluindo histórico médico, sorologias e inspeções detalhadas dos órgãos, tumores ocultos ou micrometástases microscópicas podem não ser identificados.
“Se foi feito o teste e qualificou que veio do doador, não tem jeito, esse câncer veio junto com o fígado. Não é um câncer novo. O doador com certeza teve um câncer em algum momento, e ao ser feita a remoção do órgão, ele tinha células cancerosas presentes”, afirmou Hoff.
A médica Caroline Daitx acrescenta que, embora raros, esses riscos devem ser incluídos na conversa pré-transplante com o paciente. “O processo de consentimento informado deve incluir a discussão sobre a possibilidade, ainda que remota, de transmissão de doenças do doador, incluindo malignidades ocultas”, disse.
Silêncio e busca por explicações
Desde setembro de 2024, a esposa de Geraldo, Márcia Helena Vaz, iniciou uma campanha nas redes sociais e pelas ruas de São Paulo em busca de explicações. Para ela, a falta de transparência institucional agrava ainda mais a situação vivida pelo marido.
“Não cabe, nesse caso, um silêncio institucional. Por favor, não cabe. Não cabe porque isso dá margem para que o erro continue acontecendo. O silêncio produz isso. Uma margem para que o erro continue acontecendo”, disse em entrevista para o portal Metrópoles.
Ela também questiona o sistema de triagem. “Primeiro, a gente precisa saber onde ocorreu o erro. E se o erro aconteceu, quem o cometeu. Para depois, a partir dali, partir para um pedido de mudança com urgência acerca do processo. Hoje é o Geraldo, amanhã pode ser o Antônio, depois, o José”, afirmou.

Geraldo, que era técnico de eletrodomésticos antes do diagnóstico, está atualmente impossibilitado de trabalhar. Com o avanço da metástase, ele iniciou sessões de quimioterapia contínuas e enfrenta um prognóstico sem previsão de cura. “Ele tem que fazer [quimioterapia] pro resto da vida dele, porque sempre essa doença vai ter que estar controlada. No melhor do prognóstico, que ela continue controlada enquanto ele viver”, explicou Márcia.
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O que dizem as autoridades
Em nota, o Ministério da Saúde informou que todos os protocolos estabelecidos foram seguidos durante o processo de triagem do fígado doado. A pasta afirmou que não foram identificados sinais ou histórico de doenças no doador e que os exames laboratoriais, análise clínica, entrevista com familiares e inspeção dos órgãos foram realizados conforme os padrões internacionais.
O órgão também afirmou que acompanha o caso junto à Central Estadual de Transplantes de São Paulo e ao hospital responsável, e que os exames realizados até o momento “não são conclusivos sobre a relação causal, que exige análise minuciosa”.
Já a Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo (SES-SP) informou que os transplantes seguem critérios técnicos e protocolos definidos pelo Ministério da Saúde e pelo Sistema Nacional de Transplantes (SNT). Segundo a secretaria, todos os órgãos são submetidos a exames obrigatórios para detecção de infecções e doenças, além de uma avaliação médica detalhada do órgão antes da utilização.
O Hospital Israelita Albert Einstein declarou que não foi responsável pela triagem do órgão e atuou apenas no transplante e no acompanhamento do paciente após o procedimento. De acordo com a legislação brasileira, regulada pelo Decreto nº 9.175/2017, toda doação de órgãos deve ser gratuita e anônima. Por isso, a família de Geraldo não teve acesso a dados sobre a doadora, apenas a informação de que se tratava de uma mulher vítima de AVC.
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