Os gritos que ecoavam pelas ruas adormecidas do bairro da Pedreira nas madrugadas que antecediam o Círio de Nossa Senhora de Nazaré eram o convite que o pedagogo José Antônio Costa Filho viria a aceitar anos mais tarde. Em meados dos anos 1980, ele era adolescente e acompanhava de perto a movimentação dos romeiros que se preparavam para seguir rumo ao local onde a corda do Círio era estirada no chão. Hoje, aos 44 anos, ele já acumula 15 anos de experiência como promesseiro da corda de Nossa Senhora.
A devoção mariana está presente na vida de José Antônio desde quando ele ainda estava no ventre de sua mãe, quando ele contabiliza que participou do seu primeiro Círio. Desde então, o pedagogo nunca perdeu nenhum Círio na vida e boa parte deles é vivenciado com as mãos cerradas na corda. “Eu deveria ter uns 12 anos e eu lembro que os mais adultos, adolescentes, se organizavam para ir para a corda no Círio e eu tinha muita vontade de fazer isso também. De madrugada, quando dava umas 3h a 4h, o pessoal começava a gritar na rua ‘quem vai, quem vai, quem vai?’. E as pessoas iam saindo de suas casas e juntava aquele grupo de 40, 50 pessoas que iam andando até o local para sair na corda”.
A primeira vez que ele próprio participou da corda do Círio, o formato deste que é um grande símbolo da procissão tinha um formato diferente do atual. À época, a corda formava um ‘U’, com as duas extremidades atreladas à berlinda e, sem que tivesse muito tempo para pensar, José Antônio logo foi colocado como ‘frente de corda’, como eram chamadas as pessoas que ficavam bem na frente da corda e que, portanto, precisavam fazer mais força para puxá-la.
“Eu já fui para a corda com o pé torcido e enfaixado. Eu tinha torcido o meu pé e ele estava imobilizado, mas eu não consegui não ir para a corda”, lembra. “Mas o que acontece quando você está na corda do Círio é que o teu corpo está destruído, mas você não sente dor. Você sente depois, quando o seu corpo esfria. A gente fica com uma sensação de ‘eu vou entregar, eu tenho que entregar’. A sensação de ir na corda é uma coisa profunda. É como se alguém pegasse a tua alma, lavasse e colocasse no sol”.
Entre as muitas situações já vivenciadas, José Antônio destaca a solidariedade compartilhada entre os que estão ali cumprindo suas promessas. “Não existe maior solidariedade do que dentro da corda do Círio. Se alguém te dá uma garrafa d’água, aquela garrafa não é sua, ela é de todo mundo que está ali”.
Em outro ano de participação na corda, José Antônio lembra de um episódio em que esse sentimento de solidariedade se apossou dele em um momento de grande decepção. “Teve um ano que cortaram a corda e eu estava muito chateado. A gente estava caminhando e a Santa estava vindo, mas tinha um pagador de promessas de joelhos bem no caminho. Queriam tirar ele da frente da procissão porque a Santa ia passar e ele ia ser engolido pela procissão, mas eu e outros promesseiros não deixamos que tirassem ele. Eu me abaixei e falei no ouvido dele: ‘amigo, aqui só tem promesseiro. Tu deixas a gente te carregar até a Basílica?’”, recorda José Antônio, que também é voluntário da Cruz Vermelha há 10 anos. “Ele deixou, a gente pegou ele, colocou no ombro e fizemos todo o percurso com ele nos ombros e deixamos ele na frente da Basílica. Eu nunca esqueci disso”.
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Os momentos vivenciados na corda também estão gravados na memória da estudante de gestão ambiental Cris Sousa, 30 anos. A primeira vez que ela participou foi em 2010, através do convite de amigos que integram o grupo Amigos da Corda. E o que ela sentiu no momento em que vivenciou aquela manifestação de fé de perto é até difícil de traduzir em palavras. “É sempre muito comovente porque é uma coisa que eu cresci vendo. É um momento inexplicável, é aquela emoção que bate e que parece que o nosso coração não cabe de tanto amor e tanta fé”.
Ainda em 2010, ela lembra que os integrantes do grupo de amigos promesseiros que ela faz parte até hoje a ajudaram a ter o primeiro contato com a corda. “Foi o momento em que eu via a cidade mais em harmonia, onde as pessoas eram muito mais gentis e generosas umas com as outras”, conta. “Parecia que a fé de cada um movia aquela corda que, muitas vezes era muito apertado, era dolorido, um pouco desconfortável, mas era um desconforto acolhedor porque, ao mesmo tempo, você tinha outras pessoas jogando água em você, te abanando, te fazendo puxar a Berlinda de uma maneira que você acreditava que ia conseguir”.
Em outro ano, Cris também pôde atuar na corda de outra maneira, como voluntária do Corpo de Bombeiros. “Foi uma sensação incrível poder estar ali, poder ajudar, poder entender um pouco mais sobre a fé, não só a minha, mas de outras pessoas. É fantástico poder participar, poder estar ali em devoção, pedindo e principalmente agradecendo pelas bênçãos e pelas graças que eu venho alcançando, de saber que Nossa Senhora sempre me guarda e protege aos meus familiares e amigos”.
Hoje, Cris mora no Distrito Federal, mas sempre que possível vem a Belém para participar do Círio. E nos poucos anos que ela não consegue vir, os Amigos da Corda garantem que a corda chegue até a Cris. “Às vezes as meninas me ligam naquele momento de oração, no momento antes da saída da corda, fazem chamada de vídeo e é incrível também poder participar daquele momento, mesmo de longe”.
Há 10 anos, o analista contábil Allec Bezerra, 25, também se faz presente na corda de Nossa Senhora de Nazaré. Ele lembra que se tornou promesseiro em 2014, quando tinha 16 anos de idade e cursava o 2º ano do Ensino Médio. Assim como muitos devotos, o jovem saiu na corda pela primeira vez motivado pelo desejo de conseguir uma vaga no vestibular, mas hoje, refletindo sobre o que o levou a se tornar promesseiro, ele considera outro motivo fundamental. “No fundo acredito que o principal motivo foi porque em 2010 eu perdi meu pai de uma forma muito repentina. Ele era novo, tinha 40 anos de idade, cheio de vitalidade. Essa perda me afetou muito, demais mesmo, e me apeguei a muitas coisas para que eu pudesse entender e aceitar o que tinha acontecido”, recorda. “Então a partir desse ano, assim como nos outros, fui na intenção de pedir proteção, sabedoria e discernimento além da preparação pra minha aprovação no vestibular, mas também de agradecer por ter conseguido encontrar forças para estar passando por esse momento delicado”.
Allec pôde conhecer a sensação única de puxar a corda que encaminha a Berlinda de Nossa Senhora, e que ele descreve como uma sensação de muita paz, afago e aconchego. “Sei que pode soar totalmente contraditório já que o esforço físico ali parece ser o ponto principal e ele é bastante sentido, mas o que ganha é o que é sentido com a alma, como se fosse um colo de mãe, um toque de Deus intercedido por nossa Senhora de Nazaré, nossa mãezinha”, descreve.
Para que possa vivenciar essa experiência, ele conta que costuma se preparar para o período. Além de manter a atividade física e cuidar da saúde, ele se preocupa com a alimentação, ingerindo comidas mais leves nas 24 horas que antecedem a ida à corda da Trasladação, que ele costuma participar.
Na família, inclusive, há também uma preparação pós-corda. “Trata-se da ‘pratada de maniçoba’ na madrugada do Círio”, sorri. “Após chegarmos todos da trasladação, quem estava na corda ou quem estava acompanhando, o que nos espera é simplesmente a melhor maniçoba do mundo, acompanhada de arroz e farinha de Bragança. O nosso almoço do Círio é um pouco adiantado”.
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