Alexandre Herchcovitch pode andar um tanto descrente dos rumos da moda brasileira, mas a sua tesoura, não. Na abertura da 53ª São Paulo Fashion Week, na noite desta terça-feira (31), o estilista mostrou que suas ideias ainda se conectam aos desejos da juventude, mas não deixam de tratar a realidade.
Como adiantou em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, a ideia para o desfile da À La Garçonne, que tomou o Museu de Arte Brasileira na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), era oferecer uma visão particular sobre a moda festa. Ele entregou o prometido, porém, trocou a euforia que o tema poderia revelar pela leitura ácida sobre o estado de fim de festa do país.
Propositadamente antiquado, o estilo glamoroso defendido na passarela soou mais como retrato de um Brasil que, enquanto caminha ladeira abaixo, conserva arroubos de nobreza em nome das aparências.
O vestido verde-bandeira que encerra o desfile, combinado a luvas pretas, enlutadas, aponta que toda a desconstrução da alfaiataria de festa proposta ali ironiza a cegueira de quem não enxerga o desajuste da paisagem social.
Não era aleatório que, enquanto os modelos desfilavam uma mistura de blazers amplos retirados do smoking, coletes do fraque centenário e calças bem cortadas, empunhavam também bolsas com efeito de papelão. Era como se a suposta elegância contrastasse com o look de feira, banal, como raio X de quem mal tem o que comer mas sustenta a pose.
Essa radiografia se estendeu até as jaquetas, que receberam a estampa de costelas característica do repertório da marca, como se revelassem o vazio que se tenta esconder.
As cordas torcidas, fundamentais na iconografia da À La Garçonne, apareceram na base dessas peças, mas também materializadas nas enormes correntes douradas estendidas pelo torso. Eram mais um lembrete de que, por aqui, vive-se com a corda enrolada ao pescoço.
Herchcovitch jogou com o contraste de preto e branco na maior parte do desfile, afinal, a dupla cromática define a roupa de gala masculina. Abriu espaço, porém, para as folhagens que tingem o uniforme militar e o vermelho, sanguinolento, transformado na camuflagem que revela a beligerância de quem anda retorcendo o tecido social por essas bandas.
Os coturnos pesados, também com esse verniz militarizado, só ampliam a mensagem implícita às roupas, que bebem também do look de "prom" americano, com direito a meninas coroadas a rainhas do baile e garotos esportistas. O viés do esporte, expresso em camisaria volumosa, bonés e moletons, adiciona o tempero urbano a essa festa americanizada.
Sutilmente, Herchcovitch costurou um desfile de alta voltagem política usando uma estética de alienação, com peças simplórias, mas que, quando unidas por ele, formam a síntese de nossa festa murcha que está mais para marcha fúnebre.
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