Vencida no domingo (15) a ofensiva militar que o recolocou no poder no Afeganistão, o Taleban lançou nesta terça-feira (17) uma campanha para tentar convencer o país e o mundo de que não repetirá no governo o regime atroz que comandou de 1996 a 2001.
Em sua primeira entrevista coletiva desde a tomada de Cabul, o porta-voz Zabihullah Mujahid disse que o grupo quer paz, negou represálias contra antigos adversários e afirmou que os direitos das mulheres serão protegidos -dentro do "arcabouço do Islã", o que é no mínimo nebuloso. Sob seu governo, mulheres eram alvo prioritário da repressão brutal que os fundamentalistas islâmicos exerciam baseados numa leitura extremista do Corão. Agora, diz, é "um momento de orgulho para a nação".
Mais cedo, o Taleban já havia tentando dar cores simbólicas à sua versão 2021: um dos responsáveis pela área de mídia do grupo, Mwalawi Abdulhaq Hemad, sentou-se no estúdio com a apresentadora Beheshta Arghand, da mais popular rede de TV afegã, a Tolo.
"Ficamos todos impressionados, claro, isso nunca tinha acontecido", disse por meio de mensagem o jornalista Ali Ahmed, que trabalha eventualmente para o canal e está escondido na casa de parentes numa vila perto de Cabul. Talebans já concederam entrevistas a mulheres, mas sempre de redes ocidentais.
Na TV, o Taleban anunciou uma anistia ampla no país, não apenas para militares que aderissem ao grupo, como havia dito na segunda-feira (16). Incentivou que mulheres voltassem logo ao trabalho e disse que elas têm de integrar o próximo governo.
A declaração foi reforçada por uma fala de Enamullah Samangani, membro da comissão cultural do Taleban, a jornais paquistaneses. "O Emirado Islâmico não quer que as mulheres sejam vítimas. Elas devem estar na estrutura do governo de acordo com a sharia."
Da mesma forma, Mujahid afirmou na entrevista que mulheres poderiam estudar e trabalhar e que elas seriam "bastante ativas na sociedade, mas dentro do arcabouço do islã".
Aí começam os problemas. Além de Samangani não definir como seria tal estrutura, a sharia é a lei islâmica, cuja interpretação radical levou a extremos em regiões controladas por grupos como o Taleban, o Estado Islâmico ou o governo da Arábia Saudita.
Claro que há gradações diferentes de aplicação, mas por via de regra as mulheres são relegadas a papéis subalternos na vida pública e elevadas à condição de "rainhas do lar", para ficar no anacronismo brasileiro.
No poder, o Taleban levou esse aspecto ao paroxismo. A educação de meninas tinha de ser feita em casa, não havia saúde pública para mulheres e os corpos totalmente cobertos por burcas simbolizavam ao Ocidente tal repressão.
Ainda que as burcas sejam tradicionais entre pashtuns, a etnia majoritária do Afeganistão à qual o Taleban pertence, sua obrigatoriedade chocou o mundo. Na prática, elas seguiram sendo usadas por muitas mulheres nos últimos 20 anos, principalmente fora de Cabul. O Taleban agora afirma que exigirá o uso de hijab, o véu que cobre a cabeça e os ombros e deixa o rosto à mostra.
Ao longo das duas décadas de presença ocidental, houve avanços. Escolas e hospitais abriram para mulheres, elas integraram as Forças Armadas e a polícia, e os EUA gastaram US$ 780 milhões em programas de inclusão. "É difícil para as pessoas acreditarem que eles [os talebans] vão mudar. Estão fazendo isso para angariar apoio e para que o mundo os reconheça", diz Ahmed. Com efeito, um porta-voz das Nações Unidas afirmou que seria preciso esperar para ver se as promessas se sustentam.
Ele pode ter razão: enquanto gastava de US$ 300 milhões a US$ 1,5 bilhão em suas campanhas militares por ano, o grupo podia se financiar com a ajuda clandestina de aliados como os serviços secretos do Paquistão e o lucro da venda de ópio.
Para tocar um governo num país que não é mais uma ruína de várias guerras, como fez de 1996 até ser expulso pelos EUA, em 2001, na esteira do apoio que deu à Al Qaeda no 11 de Setembro, vai precisar mais do que isso para lidar com um país mais desenvolvido.
Em entrevista à britânica BBC, Saad Mohseni, presidente do Moby Media Group, que controla a Tolo, disse que os talebans estavam sendo corteses. Mas ele disse suspeitar que o conteúdo da TV vai acabar sendo censurado -particularmente programas de auditório e de entretenimento.
Segundo o relato de Ahmed, baseado em conversas com amigos, o clima em Cabul está calmo, e lojas voltaram a abrir nesta terça. Mas ele confirma as histórias de que moradores arrancaram outdoors com fotos de mulheres com rosto à mostra e diz que os mais aterrorizados são os hazaras.
Integrantes de uma minoria xiita, em oposição na visão do Taleban ao ramo majoritário do islamismo, o sunismo, eles comeram o pão que o diabo amassou no governo dos anos 1990. Massacres públicos, mutilação de mulheres e outras atrocidades eram comuns.
Assim como os hindus e os sikhs, tiveram seus negócios coibidos e viviam quase que clandestinamente. Com os 20 anos de ocupação ocidental, voltaram à vida normal. Agora, segundo a agência de notícias Reuters, suas casas estão sendo vasculhadas em lugares como Mazar-i-Sharif e Herat.
A Índia, preocupada com o destino de seus cidadãos em Cabul, fez nesta terça um voo de repatriação usando um cargueiro militar. No esforço para parecer mais moderado, os talebans seguem em sua política de não interferir na confusa evacuação de ocidentais e de outros que querem sair de Cabul e disseram que quem quiser sair do aeroporto para casa não seria importunado.
"Ninguém vai machucar vocês, ninguém vai bater nas suas portas", disse na entrevista Mujahid. Casos de assédio a adversários vão colocar isso à prova, como mostram vídeos de pessoas sendo presas na mira de armas em Cabul e relatos de perseguição a intérpretes que trabalharam com ocidentais.
Ele também disse que o Taleban não quer inimigos. Nesta terça, um dos vice-presidentes do governo derrubado, Amrullah Saleh, declarou ser o "legítimo presidente interino" do país. Ainda que obviamente ele não tenha musculatura para isso, a fala pode prenunciar dificuldades para o Taleban, até porque comandantes militares importantes como o uzbeque Abdul Rashid Dostum fugiram de Cabul.
No aeroporto da capital, ainda não houve repetição das imagens de segunda-feira, quando multidões acompanhavam cargueiros americanos na pista, levando à cena em que ao menos dois civis se agarraram à fuselagem de um C-17 e caíram depois da decolagem, morrendo em solo.
Mas a situação está longe de controlada. Após ter de desviar para o Uzbequistão na véspera, o primeiro cargueiro alemão A-400M conseguiu enfim descer em Cabul. O enorme avião, parte do esforço para levar até 10 mil pessoas embora da cidade nos próximos dias, decolou com apenas sete a bordo.
Segundo o Departamento de Defesa dos EUA, que ordenou a reabertura do espaço aéreo para voos militares, serão preparadas três bases aéreas pertencentes a americanos no exterior para alocar até 22 mil afegãos ligados aos ocupantes.
O porta-voz do Pentágono, John Kirby, disse que quando a situação estiver mais calma será possível tirar até 9.000 pessoas por dia de Cabul. Qual será o critério para os civis é algo incerto, já que aqueles que tomaram a pista do aeroporto vinham de todos os lados.
O responsável pela invasão de 2001, o ex-presidente George W. Bush, afirmou também nesta terça que os EUA deveriam ampliar o programa de recebimento de refugiados afegãos. Estima-se em até 60 mil o número de pessoas, ex-auxiliares e suas famílias que poderiam pedir asilo nos EUA sob as regras previstas desde que o governo de Joe Biden anunciou a retirada das tropas, em abril.
Elas seguem residualmente no país, concentradas na evacuação de Cabul por 6.000 militares. Biden quer todos fora até o dia 31, movimento que precipitou a ofensiva taleban que dominou o Afeganistão em apenas duas semanas.
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